A cena passou-se na minha aldeia, a meados da década de cinquenta do século passado, quando para nos deslocarmos a Mirandela tínhamos de utilizar as famosas Barcas de Chelas no local que hoje se situa a Ponte das Barcas.
Cada casa tinha de ser auto-suficiente em quase tudo, pelo menos no dia-a-dia e, para pequenas necessidades (petróleo, vinho, açúcar, arroz e massa), existia a Taberna da Cristina (Aniceto), mesmo em frente à minha casa paterna.
Quando por ali passava alguma família cigana, ia pedindo aos agricultores as batatas e outras necessidades, mas também compravam, quando a isso eram obrigados.
A Tia Cristina, como lhe chamávamos na aldeia, foi mulher generosa e de muita luta, criando e educando as duas filhas como ninguém. Até cozia pão que vendia na taberna a alguns aflitos.
Certo dia a Cândida Cigana (se tinha mais algum nome nem ela o sabia) pede-lhe que lhe venda um pão e pergunta-lhe o preço. A Tia Cristina diz-lhe que custa doze escudos. A cigana fica baralhada e diz que é muito caro. Depois, lembra-se de pedir ajuda à minha irmã Rosa.
Naquele tempo, a moeda base na aldeia eram os dez mil réis (um escudo) e metade destes eram quinhentos réis ou uma crôa (cinquenta centavos).
A simpática cigana fica baralhada com o preço. Como muitos, só funcionava com as unidades e a referência decimal. E pergunta: - oh Menina Rosinha, são deze e mais quê?
- São dez e mais quatro crôas! - respondeu-lhe ela (ou seja, doze escudos - 12$00).
- deze e mais quatro crôas! Assim está bem! - e a cigana deixou de «resgatear» o preço.
A partir deste episódio, quando alguém não percebia o trivial, entrava o dito: «são deze e mais quê»?
Vem este episódio antigo à liça porque eu costumo comprar muito do que preciso aos agricultores (de Braga, Vila Verde e Amares) que vendem (directamente aos consumidores) os seus produtos no Mercado Municipal de Braga. O mais barato do país.
Na manhãzinha do sábado de Ramos, comprei a uma lavradeira de Amares umas tangerinas deliciosas e docinhas como o mel. Quando a senhora as pesa diz-me: que passa dos três quilos e que é melhor fazer os quatro. Disse-lhe que não. Então: - os três quilos e meio. Disse-lhe que queria aquelas que pus no saco. A senhora disse-me que não me podia fazer a conta a três quilos e duzentas gramas.
Contrapus: - Se me leva a setenta cêntimos o quilo, tenho que lhe dar dois euros e vinte e quatro cêntimos.
Uma lavradeira ao lado atalhou e disse: - são dois euros e meio.
A simpática lavradeira das tangerinas pergunta-me: - como é que fez a conta?
- Se o quilo é a setenta cêntimos - respondi-lhe - e os três quilos custam dois euros e dez cêntimos. Cem gramas custam sete cêntimos e duzentas catorze, somando dá dois euros e vinte e quatro cêntimos.
Esta cena fez-me avivar a memória daquela em que a minha irmã foi protagonista dos «deze e mais quê», já lá vão uns sessenta anos.
O que é certo é que no mercado de Braga só se vendem em fracções de meio quilo e unidades, a não ser que haja uma balança de cálculo automático por perto. Manual ou mentalmente ninguém faz o cálculo prático como o que referi.
O meu pai fazia essa conta mentalmente ainda que tivesse de meter fracções e divisões. No seu tempo e no meu de criança, ninguém na aldeia ou na «feira da bila» tinha papel e lápis à mão. Quem não conseguisse fazer a conta do negócio de cabeça, dizia o meu pai que era «brutote» (leia-se burro).
Um dia o meu pai calou os mais «espertos» da minha família numa contenda que se arrastava. Até já acusavam o meu pai, mais recto que uma escritura, de querer favorecer o filho mais velho. Eu próprio fui levado para o lado dos que faziam o cálculo com papel e lápis. Mas, depressa me passei para o lado do meu pai quando, mentalmente, fez ao pé de mim a conta.
As nossas gentes do campo eram melhores que máquinas calculadoras. O Miguel Tomé Mateus, pastor que serviu no rebanho dos serviços agrários do Valongo era melhor a fazer contas que uma registadora, porque não se enganava e as máquinas ao faltar-lhe as pilhas embrutecem.
Um dia, a meados do século XX, estariam na Maravilha a pesar uma camioneta de azeitona saca a saca e ao pesar a última saca o apontador tinha de fazer a soma. O Miguel, perguntou-lhe se ainda não sabia o peso da carga, depois de se socorrer de papel e lápis? O apontador disse que tinha de somar. Então o Miguel respondeu-lhe: - não é preciso fazer a conta, são «tantos quilos».
O apontador somou e tirou a prova dos nove e ficou de boca aberta. O Miguel era mais rápido sem lápis e papel.
Mas, o António Mateus, irmão do Miguel, que foi por muitos anos pastor do casal dos Pinto Azevedo de Vale Pradinhos, era uma enciclopédia a registar episódios do dia-a-dia. Qualquer acontecimento, tivesse um ano, dez ou quarenta, referia-o sempre dizendo o mês, a hora solar do dia ou da noite e o estado do tempo.
Eu, criança ouvia isto com espanto e admiração e também tive que descodificar, matutando com os meus botões, a tabuada e as contas, mesmo complexas, de uma forma lógica.
Jorge Lage
in:diario.netbila.net
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