fotos: Manuel Valdrez |
Porque não basta fazer 100 anos, é preciso vivê-los intensidade, como o Sr. Cardoso fez.
Transmontano, foi desde muito novo que se fez ferroviário, com 14 anos, percorrendo a carreira da vida nessas linhas que da via estreita à larga, o acabaram por trazer desde o papel de praticante até ao de chefe na grande estação de Campanhã.
Passou pelo Cachão, Mirandela e Bragança, onde nas horas vagas e para ajudar a criar a família, foi estudando Contabilidade, atividade que exerceu paralelamente ao ofício de ferroviário e, depois, quando reformado dos caminhos de ferro, por mais uns anos, na Papelaria Reis, no Porto, pois já era então um técnico oficial de contas, com prova feita no Ministério das Finanças.
Colegas «invejosos» pelo facto de o Sr. Cardoso manter o seu emprergo enquanto outros, mais velhos na casa iam saindo dispensados pelo patrão, o Sr. Macedo, à medida das dificuldades crescentes da papelaria, ainda se queixaram ao Ministério do Trabalho, que fez uma fiscalização, concluindo estar tudo correto com o exercício da sua profissão.
Outra paixão do Sr. Cardoso, que agora, devido às suas maiores dificuldades motoras, já não exerce, é a Pintura, e uma mostra disso mesmo era uma exposição de trabalhos seus que estava patente no Lar de S. Lourenço aquando dos festejos do seu centenário.
Atividade que começou quase por acaso quando um dia, ainda em terras de Trás-os-Montes, foi encarregado de decorar umas almofadas, que pintou com anilina, começando então aí a investigar as melhores tintas e materiais, começando a pintar.
No Porto chegou a frequentar aulas de Pintura, primeiro com o pintor Rui Alberto, uma experiência que não considera muito positiva – após aquele lhe ter dito que ele tinha muito jeito, nunca mais lhe prestara atenção, o que acabou por protestar, acabando por ser convidado a pôr-se imediatamente na rua. Mas depois frequentou cursos abertos da cooperativa Árvore, enquanto duraram, por haver o número mínimo de alunos que o permitiam.
De um dos seus quadros, “Ousada e Segura”, guarda uma recordação curiosa. É que, tendo sido organizada uma exposição de pintores locais pela Câmara Municipal de Valongo, isto já lá vão uns bons anos, entre outros enviou esse quadro que, por exibir uma mulher de seios nus, foi a bem dizer escondido e preterido. Só que, o comissário da mostra, um pintor de origem valonguense mas radicado no estrangeiro, e já com alguma notoriedade, ao dar com o quadro e sabendo as razões da rejeição, exigiu, sob pena de ele próprio abandonar o evento, a que ele fosse exposto, e assim, o Sr. Cardoso acabou por ser, entre os pintores amadores, o único com duas pinturas presentes na mostra pública.
Recorda ainda que, por algum tempo, foi também acolhido no atelier do pintor ermesindense Manuel Carneiro.
Da sua longa carreira de ferroviário lembra também as dificuldades iniciais, quando, ainda não afeto ao quadro efetivo de nenhuma estação, corria seca e meca, destacado, com a cama às costas, isto depois da aprendizagem inicial como praticante, praticante com exame, aspirante e fator de 3ª. Entre outras terras lembra-se de ter passado por Azibo, Tadim, Arentim e lembra--se até, muito bem, de que, quando já colocado efetivamente no quadro de uma estação, o terem mais uma vez destacado, porque o seu lugar era cobiçado por um colega que teve então a proteção do, à altura, ministro Trigo de Negreiros.
António Cardoso, contudo, como era homem de não desistir, escreveu a todas as instâncias, a começar pela mais próxima e a acabar no círculo do então poderoso diretor geral da CP, o temido Espregueira Mendes.
Tanto protestou, certo das suas razões, que um dia, de surpresa, veio um telegrama de Lisboa a ordenar o imediato (no prazo de horas) do Sr. Cardoso à estação onde fora colocado e a sua substituição fosse por quem fosse.
Mais tarde, quando atingiu o topo da carreira, depois de passar pelos postos de fator de 2ª, fator de 1ª e chefe, estava colocado há cinco ou seis anos em Campanhã, altura em que se reformou.
Ser ferroviário foi um sonho de criança. Ia para a estação e começou a ajudar, mas não podia ser admitido por não ter idade. Por isso, quando vinha um comboio, e para o inspetor não dizer nada, sentava-se num banco à espera que o comboio partisse. Até que o inspetor perguntou quem era aquele menino que estava sempre ali. Esclarecido da verdade, acabou por fechar os olhos à sua entrada na CP.
Divorciado de um primeiro casamento, do qual tem uma filha – conheceu a primeira esposa em Mirandela –, António Cardoso casou em segundas núpcias com uma ermesindense, e isso explica então porque se mantém por aqui, com uma vivacidade e lucidez notáveis de um transmontano rijo que viveu, por agora... 100 anos mas muito bem medidos!
Jornal A Voz de Ermesinde
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