sexta-feira, 10 de abril de 2015

A minha mula deu-me uma patada!

Já algum tempo que andava com vontade de ouvir o tiu Manuel. É quase meu vizinho. Hoje fui ter com ele. Estava sentado à porta de casa na companhia da mulher. Foi um dos absolvidos da acusação de agressão à GNR, no tempo de construção da barragem de Bemposta, anos 1950/1963.
Passados que são mais de 50 anos ainda senti que havia algum receio em falar do que se passou. O olhar receoso da mulher quando ele falava mais solto e mesmo as choçadelas que lhe dava na perna, de modo despercebido, mostram bem o receio que ainda se sente.
O conflito surge porque alguns capatazes, chefes de equipa de trabalho agrediram fisicamente alguns dos trabalhadores da aldeia. Esta situação começa a gerar algum mal-estar entre a população e os barragistas.
Numa dessas situações de ânimos mais exaltados as pessoas juntam-se na zona do Sto Cristo, a GNR intervém, faz disparos e provoca alguns feridos. A revolta chama revolta e a aldeia em força junta-se e desarma a GNR. O reforço do contingente é significativo e muita gente é presa, agredida, ao soco, pontapé, cassetete e acusada, mesmo aqueles que não tinham estado envolvidos. A tragédia poderia ter sido maior. Alguns elementos da população que na posse de bombas de dinamite tentam atear-lhes fogo e lança-las contra a GNR. A dinamite estava com muita humidade e, sorte, não se incendiaram, teria sido uma tragédia, além dos guardas muita população teria sido atingida.
Quase já em fim de conversa e passadas hora e meia esticada e totalmente solto, fala doutras coisas. O brilho dos seus olhos e o riso achega-se como a reviver tempos de juventude e dispara: «ainda conheceste o tiu Porfírio Panqueler?» «Si.» «Era um homem balente e mui pandego. Já naquele tempo, quando se foi prá tropa, apareceu cá com duas raparigas. Depois teve que ser o pai a pagar-lhes a viagem para as mandar embora.
António Cangueiro
Já ele casado, uma vez, estava eu e outro ali no Pelourinho, ainda lá havia duas pedras grandes para bater o linho, aparece ele ali na esquina da rua junto à casa do tiu Rolés. Havia um ribeiro que corria rua abaixo. Ao passar o ribeiro: catrapus, chimpou-se e deixou-se cair de braços abertos dentro do ribeiro. Nós riamo-nos como perdidos. Passado um cachico pelo mesmo caminho aparece a mulher com um candeeiro na mão, lá teria ido à procura dele à taberna, dá de caras com ele. Ainda ele deitado chega-lhe dois tabefes bem dados. Lá a ajudamos a pô-lo de pé. Agarrou-o de braço dado mas ele tinha uma tal carraspana que não se detinha. Ele era um homem forte encostou-se a ela e pimpa, os dois pró chão, candeeiro e tudo. Apois, lá a ajudamos a levá-lo a casa. Olha que subiu as escaleiras de gatas como um menino. Ao chegar ao cimo das escadas, meio a rir-se faz-lhe uma festa na anca. Ela tinha um prato de esmalte ali à mão com cascas de batatas para mandar prá rua, pega no prato e zás, racha-lhe a testa duma ponta há outra. Toca a chamar o Senhor Albano que morava na praça. Tinha uma malica de enfermeiro e lá veio a cura-lo.
No outro dia quando alguém lhe perguntava como tinha acontecido aquilo, ele respondia: «a minha mula deu-me cá uma patada!»

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