Escolha qual é a sua bola doce favorita, mate as saudades do rico folar mirandês e, depois, vá lavar as vistas a São João das Arribas, onde o rio Douro é selvagem e poderoso. Nós experimentámos e recomendamos.
A Páscoa é do folar e do cabrito? É. Mas não só. A Páscoa é de salgados, mas também é de doces e nem sequer estamos a falar de amêndoas e ovos de chocolate. Bem-vindos a Miranda do Douro e à Festa da Bola Doce e Produtos da Terra. Lambuze-se e vá, depois, desgastar as calorias numa bela caminhada junto ao rio Douro. Agora que a Primavera está mesmo a fazer frente aos restos do Inverno que ainda têm soprado por aí, o planalto mirandês é um belo local onde passar o fim-de-semana.
É melhor apressar-se porque a festa está quase a terminar — acaba este sábado, mas só à noitinha, por isso ainda tem tempo. A vantagem de chegar apenas hoje a Miranda é que, se a sua perdição é mesmo a bola doce, já vai ter uma espécie de guia a ajudá-lo a decidir por onde começar a prova e compra desta iguaria, uma vez que o concurso para escolher as três melhores bolas doces estava marcado para ontem. Troque as voltas à refeição comida entre as delícias dos 25 produtores instalados no Largo do Castelo e comece, assim, pela sobremesa (e não se fique pela bola doce classificada em 1.º lugar, porque os gostos são relativos e quem sabe se a sua preferida até nem é outra?), deixando para o final os salgados. Porque o concurso para o melhor folar acontece hoje e sempre pode fazer de conta que faz parte do júri e tentar adivinhar qual sairá vencedor. Não será bem uma prova cega, como a que júri realiza, mas o que é que isso importa?
A Festa da Bola Doce e Produtos da Terra instalou-se em Miranda do Douro pela segunda vez, numa iniciativa conjunta da câmara municipal e da Associação Sabores de Miranda, com o objectivo de dar a conhecer este doce tradicional da região, que as duas entidades querem ver certificado. Ou não fosse ele um doce genuíno de Miranda, intrinsecamente ligado à Páscoa. As suas origens andam perdidas no tempo, mas em breves minutos encontramos duas explicações para a invenção desta iguaria local que mais não é do que cinco ou sete camadas finas de massa de pão intercalada com doses generosas de açúcar e canela. Na Aldeia Nova, a poucos quilómetros de Miranda do Douro, Luísa Granjo dá-nos a primeira versão: “Antigamente, toda a gente fazia pão em casa. Como não havia grandes posses para comprar doces, as famílias guardavam as sobras da massa do pão, estendiam-nas, faziam camadas e punham, entre cada uma delas, açúcar e canela”, diz. Da Câmara de Miranda do Douro, a vereador do Desenvolvimento Rural, Anabela Torrão, oferece outra perspectiva: “Há muitas dúvidas quanto à origem do doce, mas ele está muito associado à Páscoa e como, durante a Quaresma, há a tradição de não se comer carne [às sextas-feiras] julga-se que a bola pode ter sido inventada para substituir o folar, que leva várias carnes.”
Nascida da pobreza ou da imaginação dos mirandeses (ou, muito provavelmente, da combinação dos dois), a bola doce evoluiu, continua a guardar os seus segredos, e dificilmente será encontrada noutra região do país. Anabela Torrão diz que a iguaria não é tão simples de fazer como pode parecer à primeira vez, apontando como “o segredo” do seu sucesso “as camadas muito finas de massa, que, intercaladas com açúcar e canela, tornam o doce bastante húmido e suculento”. Luísa Granjo, por outro lado, explica que, também aqui, a tradição já não é exactamente o que era, e hoje há novas variações da bola doce, com a maçã e a noz a serem também adicionadas à confecção. “Mas as pessoas ainda continuam a procurar mais a tradicional”, acrescenta a vereadora.
O melhor é tirar a prova, na festa de hoje. E não seja tímido, não vale a pena ficar pela bola doce. Há-de haver por lá folares e enchidos, mel e compotas do planalto mirandês. O suficiente para ficar de barriga cheia e achar que, se calhar, já era altura de ir dar um passeio. Se não for de grandes caminhadas, pode ficar mesmo pela cidade, visitar a Sé e ver como está vestido o Menino Jesus da Cartolinha (figura mítica, que dizem ter levado à vitória dos mirandeses contra os invasores castelhanos de Miranda do Douro, no século XVIII). Espraie-se mais um pouco e desgaste as calorias ganhas com a bola doce e o folar numa caminhada no Parque Urbano do Rio Fresno, num percurso sempre ao longo do rio e sem nunca perder Miranda de vista. Mas se se sente um pouco mais aventureiro — e tem de sentir, porque isto é algo que não pode mesmo perder — lembre-se que está em pleno Parque Natural do Douro Internacional e que o rio, nesta região, oferece vistas absolutamente fabulosas. E não se assuste, porque pode deliciar-se com as escarpas rugosas e selvagens do Douro sem grande esforço.
Pode começar em Miranda do Douro, mas daí até à Aldeia Nova são quase sete quilómetros de caminho, pelo que, se tiver carro e não se sentir com vontade de caminhar tanto, comece na aldeia. Daí não será difícil encontrar a indicação para o miradouro de São João das Arribas, a cerca de um quilómetro da povoação.
O caminho faz-se sem grande esforço (é a descer, pelo que guarde alguma energia para o regresso) e não é preciso muito para que as arribas graníticas do Douro se comecem a anunciar em redor, ainda que o rio, por enquanto, continue escondido. Quando chega ao miradouro, contudo, já não há quem oculte o rio, a serpentear, lá em baixo, esverdeado neste início de Primavera, e guardado pelas altas escarpas de pedra, como muralhas protectoras. Do outro lado é Espanha, ali mesmo à mão de semear, pelo que não é difícil fechar os olhos e imaginar contrabandistas de outrora a fazer passar os seus produtos de uma margem para a outra, de um país para o outro.
Porque é possível descer lá baixo, garante António Carlos Garcia, marido de Luísa. Não num dia de ventania bruta, como o que enfrentámos, mas quando o sol não está demasiado forte e o vento é só uma brisa. Aquelas encostas, que ele aponta à nossa frente, e por onde diz que já desceu, já foram cultivadas. E aqui onde estamos havia um castro, como atestam várias lápides encontradas no local, incluindo a de um militar romano, Emilius Balesus. Hoje, a capela com o ano de 1853 marcado no umbral da porta (mas que António Carlos garante ser muito mais antiga) é a construção mais visível no miradouro, ainda que a sua importância seja nula, perante a paisagem única que a envolve.
Deixe-se ficar, descanse o quanto baste, inunde-se da beleza escarpada do Douro neste local e, se a caminhada lhe abriu o apetite, talvez seja hora de regressar a Miranda do Douro. Afinal, a festa só acaba às 22h30 e entre as propostas de animação religiosa e pagã (há pauliteiros, claro, como não podia deixar de ser) sempre há-de encontrar espaço no estômago para mais um pedaço de folar e uma fatia de bola doce. Não se sinta culpado. Amanhã ainda é domingo e sempre pode dar mais uma bela caminhada, em busca das paisagens encantadas do Douro.
Por: Patrícia Carvalho
Jornal Público
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