quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Paxaricos, Professor, Paxaricos

Será que os mercados sabem que o Joel se levantava às seis da manhã para ir botar as canhonas ao lameiro antes de ir para a escola?
Será que os mercados sabem que o Alexandre, no intervalo para almoço, voltava após cinco minutos porque, simplesmente, não almoçava?
Será que os mercados sabem que a Inês, com seis anos de idade, levantava-se sozinha porque a mãe, avinhada da noite anterior, não tinha aparecido em casa ou não tinha saído da cama?
Será que os mercados sabem que o Martim cresceu sem os valores dos pais, demasiado ocupados nas suas carreiras de sucesso?
Será que…
Podia continuar. A verdade é que aparecem cada vez mais crianças nas salas de aula, desnorteadas, abandonadas a si mesmas por razões diversas. Continuam as miseráveis, que sempre existiram, mas também aquelas, outras, que os pais simplesmente não lhes dedicam qualquer tipo de atenção ou atenção de qualidade. Crianças que não dormem o tempo necessário para o seu crescimento saudável, não dormem nas condições mínimas de conforto, higiene e sossego. É sabido que um dos estádios do sono serve precisamente para assimilar as aquisições cognitivas do dia anterior, que de nada serve pensar na implementação de estratégias de ensino adequadas a este ou àquele aluno, se ele não dormir o tempo adequado à sua idade. Mas também crianças vítimas da propaganda agressiva e altamente eficaz da indústria alimentar, viciadas em açúcar, em corantes, em sódio…
Perdermo-nos amiúde em análises demoradas de comportamentos desviantes e dificuldades de aprendizagem. A explicação pode ser simples. O estilo de vida destes nossos novos dias está a criar crianças desregradas, obsessivas, obesas, com uma atividade demasiado acelerada ( para evitar o termo estafado da hiperatividade), egocêntricas e não poucas vezes, criamos pequenos ditadores, impositores de vontades e regras.
Os pais de hoje não sabem dizer não. Como dizia Daniel Sampaio, quem disse que pais e filhos devem ser amigos? Claro que devem ser mas estão obrigados a dizer não quando necessário e a não dar porque não podem ou mais importante, porque dando cedem a vontades supérfluas e criam nos menores uma ideia falsa de vida fácil. É notório um grande défice em competências parentais, mesmo salvaguardando que podemos ter ideias divergentes sobre aquilo que queremos para os nossos filhos.
Apesar de tudo, as crianças continuam a ser a melhor coisa do mundo. Estão cada vez mais despertas, mais conhecedoras, mais extrovertidas e comunicativas mas estão sujeitas a demasiada oferta. Perdem-se. Dispersam-se.
O Joel das canhonas não tinha tablet, ténis de marca e canais por cabo. Não tinha instalações sanitárias em casa, dizia “ eu vou a monte, professor”. Também ao Alexandre faltava o essencial:
- Alexandre, o que almoçaste?
- Paxaricos, professor, paxaricos.
- E mais?
 - Besuntei o pão na frigideira…
Curiosamente, a momentos, via nos olhos destas crianças uma alegria momentânea, genuína que nem sempre vejo nos olhares das crianças que têm tudo ou quase tudo. Tinham espaço para correr, subir às árvores, nadar no ribeiro, conhecer os animais, podiam sujar-se, colher os frutos da natureza, apanhar amoras.
As crianças de hoje não têm tempo para brincar, brincar em liberdade, jogar à bola na rua do bairro ou andar de bicicleta pelas ruas da cidade.
Em tempos, uma associação de pais questionava os seus associados se estariam interessados em alargar o horário escolar até às dezanove horas, organizando um prolongamento acompanhado. Um pai, cidadão inglês, escreveu no papel do questionário: “ Não estou interessado, já há escola a mais em Portugal”. Tratava-se de alguém com formação superior. Paradigmático. Na verdade, este modelo de escola a tempo inteiro, serve a necessidade dos pais, com horários de trabalho nada flexíveis, impedidos de acompanhar os filhos. A pergunta que se impõe é se este modelo serve a necessidade da criança em simplesmente, ser criança. Na minha opinião, não serve.
Concentram-se às centenas, aos milhares em escolas muito bem projetadas ou não ( sabiam que nas escolas modernas não se podem abrir as janelas ???), em salas exíguas, ruidosas e com fracos materiais de construção. Crescem em espaços muito bem qualificados mas impessoais. Muito bem higienizados mas nada arejados.
Mas enfim, deve ser isto que faz bem aos mercados.
Encontremos uma solução intermédia onde o Joel não tenha necessidade de ir a monte e o Martim possa estar mais tempo com os pais.

Rui Machado

NOTA: Os nomes das crianças foram alterados e a crónica não se refere a nenhum contexto específico.

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