quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Guerras entre D. Fernando I de Portugal e D. Henrique de Castela

Miranda, Outeiro, Mós, Vilarinho da Castanheira, Bragança e Vinhais tomadas pelos castelhanos. — Feito glorioso dos de Moncorvo. — Doações de Mirandela, Moncorvo, Alfândega da Fé, Bemposta, Penas Róias e Castro Vicente.

Havendo o bastardo D. Henrique assassinado seu meio irmão D. Pedro, o Cruel, rei de Castela, assenhoreou-se-lhe do reino, que el-rei D. Fernando de Portugal lhe disputou, como bisneto de Sancho, o Bravo, e em 1369 invadiu a Galiza tomando a Corunha que logo abandonou, sabendo que D. Henrique vinha sobre ele, e fugiu para Portugal.
Em represália, o castelhano veio sitiar Guimarães que não pôde tomar, graças à heróica defesa de seus moradores; recuando sobre a nossa província «e foi-se entom caminho de Braganza, e foia cercar e filhou-a» em 1369; mas a Chronica Conimbricense, lugar já citado, diz que a tomada de Bragança foi em 1370 e dois anos depois a de Miranda, no que certamente há erro, pois a esse tempo já estavam concluídas as pazes de Alcoutim que puseram termo à guerra.
Além de Bragança, também caíram em poder do castelhano: Vinhais, Outeiro de Miranda (é a vila de Outeiro, cabeça do extinto concelho hoje incorporado no de Bragança) e Miranda do Douro.
O documento que adiante aparece publicado pela primeira vez, e supomos referente a estas guerras, além de apontar também como tomadas pelos castelhanos as vilas de Mós e Vilarinho da Castanheira, respectivamente nos concelhos de Moncorvo e Carrazeda de Ansiães, espécie não mencionada nos escritores, subministra elementos para ajuizarmos do modo como as coisas corriam. Diz ele: «... e que ora quando chegaram os nossos inimigos a essa comarca (Moncorvo) forom cercados e combatidos de muytas companhas dos ditos nosos imigos e lhe forom queimados gram parte dos arravaldes e termhos que avyam e lhes forom roubados os gaados e feitos outros muitos grandes dapnos, de que ficarom muy dapnados e defendendo eles a dita vila e poendo os corpos e averes em nosso serviço ata que os ditos imigos se alçarom de sobre eles e que outro sy moos e vilarinho de castanheira que som acerca deles fezerom contra nos e contra nosso serviço o que non devyam em como sse o dito logo de vilarinho entregarom aos ditos nossos imigos sem serem combatidos, e o dito logo de moos se emprazarom e derom a refeens non seendo cercados nem combatydos non o fazendo eses lugares primeiro saber a nos seendo enprazados a tenpo que lhes podessemos acorrer».
É datado de 24 de Dezembro de 1381, e como castigo anexa as vilas de Mós e Vilarinho da Castanheira com seus termos ao concelho de Moncorvo.
Não deixa de ter graça o facto de D. Fernando andar «mui prasmado dos povos», a sua indignação contra as supracitadas vilas e a pretensão de as ir defender ele, o poltrão, como diz Pinheiro Chagas, «que em vez de socorrer se deixava estar em Coimbra de sossego, como diz maliciosamente Fernão Lopes. Mostrou-se depois sumamente indignado contra os habitantes de Bragança e de outras povoações de Trás-os-Montes, que se tinham rendido a D. Henrique, chegando mesmo a confiscar os bens de alguns que supôs mais culpados, o povo murmurava por causa desta severidade. E como ao mesmo tempo que assim procedia, ele se deixava estar pela capital não fazendo viagens mais largas do que até Santarém ou coisa semelhante e então não havia o folhetim, nem a revista do ano, nem a sátira, nem o epigrama, nem mesmo a chansonette gaulesa cintilante de chiste e deliciosa de pico epigramático, o povo se desforrava no seu rifão que resumia tudo aquilo e Fernão Lopes nos conservou e que vai textual para lhe não tirar o pico original — ex volo vai, ex volo vem de Lisboa para Santarém — Asnos vão e asnos vêm de Lisboa para Santarém».
Modernamente, nas lutas constitucionais, o povo, eterno poeta, ressuscitou numa variante irónica o mesmo rifão aplicado a um grande general:

Saldanha p’ra cima
Saldanha p’ra baixo
Mas não passa do Cartaixo.

Alguém dá a entender que Bragança foi tomada em 1371 ou depois, e conseguintemente as mais vilas citadas deste distrito, mas parece-nos que há equívoco, visto as pazes datarem de Março desse ano.
Demais, as conquistas pelo território bragançano seguiram-se rápidas ao levantamento do sítio de Guimarães e «em mui poucos dias (como diz Fernão Lopes, e de caminho ouçamos-lhe a traça que usaram para Miranda) cá uns foram tomados por arte, outros por se não poderem defender. Assim como foi tomada Miranda que, antes que el-rei D. Henrique chegasse a ela, mudaram-se alguns seus e fingiram que eram recoveiros portugueses e que haviam mister viandas da vila por seus dinheiros, os do logar não se cotando de tal arte, deram-lhe lugar que entrassem dentro, e eles entrando tiveram logo a porta, e nisto chegaram à pressa os que iam cerca para lhes acorrer, e desta guisa houveram a villa». Duarte Nunes de Leão na descrição que nos dá deste facto segue quase ipsis verbis o dizer do velho cronista.
Referem os historiadores o pânico extraordinário que causou a entrada de D. Henrique na região portuguesa: uma verdadeira assolação. Os frades, desamparando os conventos, vagueavam aflitos fugindo ao furor desenfreado da soldadesca castelhana; os moradores das aldeias abandonavam suas casas refugiando-se nas serras ou recolhendo-se «para as cercas e castelos com suas coisas e mantimentos»como aponta Duarte de Leão. Esta notícia do cronista mostra-nos a serventia de uma espécie de fortificações muito rudimentares que existem pelo nosso bispado, nos montes mas perto dos povoados, como a cerca de S. Vicente de Raia, concelho de Chaves, que enfileiram ao lado dos velhos Castros, das Torres, como a de Rabal, sobranceira à estrada de Bragança, das atalaias, como a da Candaira no monte de Urzelo, termo de Baçal, das Trincheiras como as duas, nos termos de Varge e Aveleda, no mesmo concelho de Bragança e em ponto menor, para fins de observação das Esculcas, como a de Vilartão na estrada de Vinhais para Chaves e dos vulgaríssimos fachos.
Referindo-se a este pânico, diz Fernão Lopes: «e todos os montes daquela comarca (Trás-os-Montes) foram então cheios de homens, mulheres e moços, gado, e viveram na Abadia Velha, e em Ventuzelo e em todas as aldeias dos montes altos, e todos os monges e abades dos mosteiros daquela comarca todos fugiram; e foi isto do mês de Agosto até Santa Maria de Setembro.
E deixou el-rei D. Henrique recado (guarnição) na vila de Bragança e foi-se para Castela».
Estas guerras entre D. Fernando e D. Henrique terminaram pela paz de Alcoutim, celebrada a 31 de Março de 1371, na qual se estipulava a entrega recíproca das terras tomadas e o casamento do nosso rei com D. Beatriz, filha do de Castela, o que não teve efeito e somente a primeira condição, voltando então ao domínio português Miranda e as demais vilas do nosso distrito com Bragança, governada na devoção de Castela, por um tal Garcia Alves de Osório.
A propósito destas guerras e seus protagonistas mete o bom do Fernão Lopes na sua obra tais naturalismos de frase vermelha que excedem muito quanto a moderna musa da escola realista canta. Hajam vista os capítulos XLI e LIII do livro I da sua crónica.
Na Ribeirada ou na Manteigui, de Bocage, não se diz mais desbragadamente, embora com mais malícia.
Por ocasião destas guerras fez o rei D. Fernando de Portugal largas doações aos fidalgos galegos e castelhanos que para ele se voltaram, como foram no nosso distrito: Mirandela, a D. Fernando de Castro, cunhado de el-rei D. Henrique; Moncorvo, Alfândega da Fé, Bemposta, Penas Roias e Castro Vicente, a Fernando Afonso de Zamora.




Memórias Arqueológico-Históricas
do Distrito de Bragança

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