(colaborador do "Memórias...e outras coisas..."
EM FUGA
A NOITE tomara definitivamente conta do mundo e os dois monges avançavam com dificuldade pela estrada milenar, que ameaçava ser invadida pela floresta em alguns sítios onde começava a esboroar-se. A única luz que tinham, eram uns pequenos raios de luar que iluminavam fracamente através das copas das árvores.— Que achais que se passou ali, irmão? — A voz de David, tremula de emoção e esforço, fez-se ouvir quase num sussurro.
— Creio que o abade já suspeitava do que se estava a passar, mas não esperava que fosse tão grave. Ele bem referiu que era uma coincidência “do maldito” o facto da aldeia ser dedicada a São Cristóvão. — Também o outro denunciava esforço ao falar.
— São Cristóvão?!? Que tem isso a ver com homens que se devoram?
— Não só que se devoram, mas que se transformam… dizem escritos muito antigos que São Cristóvão era um ser com cabeça de cão.
— Bendito seja Deus! — O monge benzeu-se. — Como se pode crer em tal coisa?
— Antes de conhecer Nosso Senhor Jesus Cristo, São Cristóvão não só tinha cabeça de cão, como comia carne humana; era um Cynocephalus. Quando se converteu recebeu a forma humana como recompensa.
— Agora me lembro! — Os olhos de David brilhavam e pareciam saltar das órbitas, no escuro. — Sim, agora me lembro de ler sobre os Cynocephalus, mas nunca associei a este santo…
— Como o abade pensava, esta peste é contagiosa e espalha-se como fogo na palha, temos que nos precaver e alertar todas as terras em volta. Assim que se comerem uns aos outros, passará, mas teremos que impedir que alastre. — Lágrimas correram do olhos de Simão. — A minha fé não foi suficiente para exorcizar aquele mau espírito e não temos tempo para o fazer a qualquer deles, antes que nos devore.
O resto do caminho foi num silêncio pesado, só interrompido pelo arfar dos dois monges, mas começavam a temer falhar o carreiro onde deviam abandonar a calçada e tomar a direção do mosteiro. Por fim, divisaram o que parecia um saco, mas depois acabaram por perceber que era um corpo deitado na estrada. Logo ao lado iniciava-se o trilho que deviam seguir.
*** *** ***
— Irmão João! Irmão, que tendes? Aqui deitado no meio da estrada sujeito a ser pisoteado por algum cavalo! — A voz de frei Simão chegava de longe e arrancava-o lentamente do torpor em que se encontrava. — Estais ferido? Isto é sangue? — Ele tentou ver no escuro o liquido viscoso com que empapara as mãos ao ajudar o companheiro.
— Onde está o irmão Tiago? — Quis saber David olhando em volta e embrenhando-se no mato que ladeava o trilho.
— Não sei. — João arrastava uma voz distorcida e estranha, enquanto se tentava erguer. — Ele deixou-me descansar um pouco. — Ato contínuo, vomitou copiosamente no espaço entre eles.
Simão largou-o e deu um passo atrás entre o surpreendido e o enjoado. Olhou as mãos sujas à luz da lua e os restos expulsos pelo monge. Grossas gotas de transpiração correram-lhe na fronte quando olhou o João, de novo de joelhos e depois para além dele, numa expressão de puro pânico.
— Foge, irmão!!!! — Gritou Simão a plenos pulmões, repentinamente, fazendo gelar o sangue nas veias de João e David.
Tão depressa gritou como se lançou numa corrida na direção do convento, deixando os dois companheiros para trás. David, saiu do meio do matagal e deitou a correr atrás dele, mas tropeçou de imediato em algo volumoso que rebolou entre os seus pés. Conseguiu distinguir no escuro um corpo envergando as vestes de monge. O rosto quase tinha desaparecido, restando os ossos expostos da face com o sorriso eterno da morte. Gritou histérico e relançou-se na corrida atrás do outro.
João, completamente trôpego, correu desajeitadamente atrás dos dois, que lhe ganhavam distância rapidamente. Em pânico, sem parar, tentou olhar para trás para perceber o que os perseguia e caiu desamparado no meio das silvas que ladeavam o trilho.
Ergueu-se novamente e reiniciou a corrida, se é que se podia chamar corrida às grotescas passadas que dava. Sentia-se tonto e enjoado, a vista fugia-lhe e acabou por apagar-se.
*** *** ***
Sonhava com lobos e via focinhos de presas ensanguentadas, garras que rasgavam carne… e tristeza, tanta tristeza…
— O senhor seja louvado, irmão João! — A voz de Félix chegava-lhe difusa, mas transmitia-lhe conforto e calma. Chorou mansamente enquanto sentia dores excruciantes em todo o corpo. — Que fazeis aqui? Onde estão os outros? Valha-nos Deus, está todo ferido e ensanguentado! Acudam aqui, irmãos. Oh valha-nos o Salvador, como ele está!
Sentiu-se erguido no ar e transportado. Assim embalado, incapaz de responder, entregou-se ao torpor e perdeu o conhecimento novamente.
*** *** ***
Havia paz… não sentia o tecido grosseiro do hábito junto ao corpo. A respiração estava calma, mas não se conseguia mover nem abrir os olhos, como se o seu corpo não lhe obedecesse. De novo lhe chegavam as vozes quase indistintas que sussurravam. Ele escutava como se fosse apenas um ouvinte a quem não interessava a conversa.
— De certeza que não havia mais ninguém? Até onde foram?
— Quase até à estrada romana, reverendíssimo abade.
— Nada, nada? — Mateus insistiu.
— Não senhor, há vestígios de sangue em vários sítios, mas supomos que sejam do irmão João. Não sabemos como se feriu desta maneira e não sei como consegue estar vivo, depois de perder tanto sangue. Já reparou bem no rosto dele, cheio de hematomas? Está tão deformado que quase não o reconhecia.
— Mas e os outros que foram convosco, irmão Félix?
— Como eu e o irmão Marcos trouxemos João numa padiola, os outros seguiram em frente.
— O que quer que atacou o irmão João, deve ter atacado também os outros. Valha-me Deus e anda pela floresta às soltas! — O abade gemeu. — Ele deve ser o único sobrevivente. Depressa, tendes que ir em busca dos nossos irmãos, que regressem rápido, os outros devem estar mortos! Ide-vos, via! Faltam poucas horas para anoitecer, levai todos os que puderdes e armai-vos, nem que seja com as facas das cozinhas!
Tudo sossegou novamente e João retomou o seu sono.
*** *** ***
Acordou. Abriu os olhos e comprovou que estava na sua cela. Já era noite, estaria completamente escuro, não fosse uma pequena vela pousada na mesa que usava para ler.
Soergueu-se e rosnou com dores no corpo, mas mesmo assim sentia-se cheio de energia. Esfregou os olhos e achou a pele muito sedosa. Olhou as mãos escuras e enclavinhadas. Ergueu-se cambaleante.
Do pequeno postigo que dava para o pátio chegavam-lhe as vozes dos irmãos:
— Encontramos Simão, Tiago e David!!! Estão todos em bocados meio devorados!
— Onde está João? Tiago tinha o capuz dele na mão!
Doía-lhe a boca, parecia que os dentes não cabiam lá. Aproximou-se da bacia de cobre, ao pé da vela, para lavar o rosto e estacou ao olhar as mãos castanhas cobertas de pelo sedoso e olhou para a água que ondulava no recipiente; era a cabeça de um lobo que o olhava no reflexo.
Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.
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