segunda-feira, 9 de abril de 2018

28 de Janeiro de 1908 · Apontamentos indispensáveis se eu morrer

Fotografia do Terreiro do Paço, com indicações manuscritas: 
"Buiça, Costa, Nunes. Polícia nas arcadas". 
Inscrição não identificada no canto inferior esquerdo. 
(Documentos Carvalhão Duarte/ Rocha Martins/ Fundação Mário Soares) 

Documento original escrito por Manuel Buiça nas vésperas do regicídio (Documentos Aquilino Ribeiro Machado) e, bem assim, algumas fotografias que melhor situam os acontecimentos do dia 1 de Fevereiro de 1908, bem como excertos da intervenção de António José de Almeida na Câmara dos Deputados a propósito do regicídio.

Manuel dos Reis da Silva Buiça, viúvo, filho de Abílio Augusto da Silva Buiça e de Maria Barroso, residentes em Vinhaes, concelho de Vinhaes, districto de Bragança. Sou natural de Bouçoaes, concelho de Valpassos districto de Villa Real (Traz-os-Montes), fui casado com D. Herminia Augusta da Costa Buiça, filha do major de cavalaria (reformado) e de D. Maria de Jesus Costa. O major chama-se João Augusto da Costa. Viúvo, ficaram-me de minha mulher dois filhos a saber: Elvira que nasceu em 19 de dezembro de 1900, na rua de Santa Martha numero ... rez do chão e que não está ainda baptisada nem registada civilmente por motivos contrarios da minha vontade; e Manuel que nasceu em 12 de Setembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria numero quatro, quarto andar, esquerdo e foi registado na administração do primeiro bairro de Lisboa no dia onze de outubro do anno acima referido. Foram testemunhas do acto Albano Jose Correia, casado empregado no commercio e Aquilino Ribeiro, solteiro, publicista. Ambos os meus filhos vivem comigo e com a avó materna nas Escadinhas da Mouraria n. 4, 4.º andar, esquerdo. Minha familia vive em Vinhaes para onde se deve participar a minha morte ou o meo desapparecimento caso se deam [sic]. Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os eduquem nos principios de liberdade, egualdade e fraternidade em que eu comungo e por causa das quaes ficarão, porventura, em breve, orfãos. 


Lisboa 28 de Janeiro de 1908 Manuel dos Reis da Silva Buiça .

P.S. Reconhece a minha assinatura o tabelião Motta, rua do Crucifixo - Lisboa Selo de imposto no valor de 100 reis/1908 
Reconheço
Reconheço a assinatura e lettra retro dos signatarios do papel por mim rubricados Lisboa 22 de Agosto de 1908 

Dois selos (imposto de selo de 20 Rs. e contribução industrial de 10 Rs.) com assinatura aposta pelo notário (José Mário ? Silveira da Mota) Seiscentos e cincoenta

Biografias

Alfredo Luís da Costa (1885-1908)
Nasceu em Casével, Castro Verde, em 1885. Fundou um jornal para a defesa dos empregados do comércio em Angra do Heroísmo, fez propaganda republicana, escreveu em jornais de classe em Lisboa, foi caixeiro viajante, presidiu à Associação dos Empregados do Comércio de Lisboa e fundou a Social Editora, com Aquilino Ribeiro. 
Lançou vários folhetos de propaganda. Participou na intentona de 28 de Janeiro de 1908 e no atentado de 1 de Fevereiro de 1908, contra o rei D. Carlos I e D. Luís Filipe. 
Juntamente com Manuel Buiça foi um dos regicidas, sendo morto pela polícia no local.

Manuel dos Reis da Silva Buiça (1876-1908)
Professor, nasceu em Vinhais em 1876. Foi 2.º sargento no regimento de Cavalaria de Bragança. Em Lisboa ficou conhecido como professor do ensino secundário, leccionando designadamente na Escola Universal e na Escola Nacional. 
Republicano e carbonário, participa na intentona de 28 de Janeiro de 1908 contra o governo de João Franco, e foi um dos regicidas que a 1 de Fevereiro de 1908 mataram o rei D. Carlos I e o príncipe Luís Filipe. Foi morto no local. 
Tornou-se uma figura legendária devido ao seu protagonismo no atentado do Terreiro do Paço. Deixou dois filhos (um rapaz e uma rapariga), para quem foi aberta uma subscrição pública depois da morte de seu pai.

O Regicídio
1 de Fevereiro de 1908
O rei D. Carlos, sua mulher D. Amélia e o princípe herdeiro D. Luís Filipe tomaram o comboio em Vila Viçosa às 11 horas, em direcção ao Barreiro, sofrendo a viagem um atraso de três quartos de hora devido a descarrilamento em Casa Branca. O vapor D. Luís, dos Caminhos de Ferro do Sul e Sueste, transportou a família real até Lisboa, atracando pouco depois das cinco da tarde. A esperá-los, estava o infante D. Manuel, que viera das Necessidades num landau (carruagem aberta) com o visconde de Asseca, o Presidente do Ministério João Franco e elementos do governo e da corte.

A família real entrou num landau: "No fundo a minha adorada Mãe dando a esquerda ao meu pobre Pai. O meu chorado Irmão diante do meu Pai e eu diante da minha Mãe" (in Diário de D. Manuel). Atrás, seguiam os condes de Figueiró e o marquês de Alvito. João Franco vinha num coupé, em quarto lugar.

Quando a carruagem real estava perto da curva para a entrada da Rua do Arsenal, "um homem de barba preta [Manuel Buiça] com um grande gabão", vindo pela retaguarda e afastando as abas do capote, agarrou na carabina que transportava (Winchester, modelo 1907), apontou e descarregou o primeiro tiro, que acertou no pescoço de D. Carlos, matando-o. Apontou e descarregou de novo, atingindo desta feita o rei no ombro.

Enquanto isto, vindo das arcadas, Alfredo Costa, armado com uma pistola Browning FN, calibre 7,65, avança para a carruagem real. Subindo para o estribo, dispara quase à queima-roupa sobre o rei. 
D. Luís Filipe levanta-se, de revólver em punho, mas antes de poder disparar, Costa atinge-o no peito. A rainha, de pé, agita um ramo de flores, gritando "infames, infames!"
Gravura representando o regicídio, por Rocha Martins. 
Nesta visão do acontecimento, o «landau» dá entrada na Rua do Arsenal, já com D. Carlos e D. Luiz Felipe tombados, enquanto Alfredo Costa (à direita, em primeiro plano) e Manuel Buiça (à esquerda, ao fundo, sofrendo uma espadeirada) são abatidos pela polícia e pela escolta que acompanhava o cortejo das carruagens. 
01 FEV. 1908
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Seguiu-se a confusão, com a polícia à espadeirada e a disparar em todas as direcções. D. Manuel diria mais tarde: "começou uma perfeita fuzilada, como n'uma batida às feras!" Ambos os regicidas cairam mortos. Eram cinco e meia da tarde. Também o transeunte João Sabino da Costa, ourives, foi morto pela escolta.

A carruagem seguiu, a toda a velocidade, para o Arsenal da Marinha, onde o rei já entrou morto e o príncipe herdeiro agonizante, falecendo pouco depois. O Infante D. Manuel também estava ferido num braço, sem gravidade.

Ainda hoje se desconhecem os contornos exactos da acção que levou à morte do rei e do príncipe herdeiro, avultando as conjecturas que pretendem implicar outros diversos participantes ou que entendem que o verdadeiro alvo do atentado seria o ditador João Franco. Mas o certo é que não foram encontrados até hoje os processos judiciais organizado após o regicídio, cuja instrução foi cometida pelo Paço, sucessivamente, a três juízes de Instrução Criminal, que prenderam numerosos "suspeitos" e lançaram múltiplas acusações. Sem qualquer resultado...
Populares depondo flores nas campas de Alfredo Costa e Manuel Buiça. 
s/d [presumivelmente, Agosto de 1908] 
(Documentos Carvalhão Duarte/ Rocha Martins/ Fundação Mário Soares) 

Como afirmou o último chefe do governo da monarquia, Teixeira de Sousa, que ao tempo era director da Alfândega e tudo presenciou da janela do seu gabinete no Ministério da Fazenda, "Eu assisti ao desenrolar do regicídio e vi, inequivocamente, que os que haviam disparado contra a carruagem real haviam sido ali mortos. Os regicidas caíram no Terreiro do Paço."

A situação do país nas vésperas do regicídio era fortemente marcada pela ditadura do governo de João Franco e os seus "constantes atropelos à lei fundamental". É nesse contexto que muitas notícias da época revelam a frieza com que foi acolhida a morte do rei, abandonado pelos seus, ninguém parecendo especialmente comovido. "Os fidalgos, os pares do reino, os conselheiros, estavam todos enfiados em casa, a tremer de medo." O próprio funeral de Estado, cheio de pompa, decorreu friamente. Do outro lado "o clamor vitorioso de vindicta, que se ergueu do coração do Povo" (in História do Regimen Republicano em Portugal). Ou como se escrevia na Loja maçónica A Sementeira, uma semana após o regicídio, deplorando embora os acontecimentos daquele dia: "às cinco horas da tarde do dia 1 de Fevereiro corrente, desapareceu o passado".

Com a morte do rei e do príncipe herdeiro, subiu ao trono o infante D. Manuel.
Fotografia do Terreiro do Paço, com indicações numeradas - organização de Rocha Martins para o livro que publicou sobre os acontecimentos de 1 de Fevereiro de 1908 No verso, várias indicações manuscritas: "Terreiro do Paço. Local exacto onde foi dado o regicídio." 
(Documentos Carvalhão Duarte/ Rocha Martins/ Fundação Mário Soares) 

Excertos da intervenção de António José de Almeida na Sessão de 3 de Junho de 1908 da Câmara de Deputados

Os acontecimentos que terminaram o ultimo reinado hão-de ter, pela sua expressão politica e philosophica, uma grande importancia, mas mais tarde, quando a posteridade inflexivel tudo puder apreciar. Por enquanto, é cedo. Todas as paixões estão em ebulição e não pode haver a serenidade precisa para lavrar a sentença que só a historia, a seu ternpo, tremendamente há-de formular com os seus incorríptiveis labios de bronze.

(...)
Causou-me estranheza o facto de o Sr. Pereira dos Santos vir lançar à conta da propaganda republicana a tragédia do Terreiro do Paço. Bem sei que aos partidos rotativos convinha - santas intenções! - que eternamente ficasse pairando sobre os republicanos a suspeita de complicidade no regicidio. Mas julguei que tudo isso tivesse desappareciclo com as declarações do Sr Presidente do Conselho quando disse ha dias, na Camara dos Pares, que se não tinha averiguado a minima suspeita sobre qualquer pessoa certa ou incerta. Assim, o Sr. Pereira dos Santos, pessoa que todos nós consideramos, veio mostrar-nos que o seu espirlto não é refractario aos trucs , que permittem lançar sobre os adversarios, com fins meramente politicos, as suspeitas mais graves sobre os assuntos mais melindrosos. 
Sinceramente, tenho pena d'este facto, porque desejava continuar a julgar o Sr. Pereira dos Santos como incapaz de praticar um acto tão condemnavel, que sendo, na apparencia, de uma grande leviandade apenas, é, no fundo, de intuitos que redundam inteiramente maldosos. Eu poderia vingar-me. E, se fosse homem de rabulices a espertezas politicas, podia fazer a S. Ex.ª a demonstração de que mais aos regeneradores do que a ninguem se podia dever uma suggestão, embora involuntaria, à realização d'aquella tragedia. Poderia citar, alem de outros, o celebre artigo do Diario Popular, devido à penna do Sr. Julio de Vilhena, em que se prophetizava que o fim da ditadura seria uma revolução ou um crime. 
Outra cousa que tambem me espantou foi a circunstancia de o Sr. Pereira dos Santos, leader regeherador e antigo Ministro, andar tão pouco ao par do que se passa no mundo, que ignora que manifestações, como as que se fizeram no cemiterio, são vulgares nos paises mais cultos, e que S. Ex.ª desconheça tão lamentavelmente a psychologia das multidões que tirasse d'aquella romaria funebre conclusões diversas das que era legitimo tirar. O povo que foi aos covaes de Costa e Buiça não quis ultrajar ninguem. O seu intento foi alevantado e generoso e muito differente d'aquelle baixo impudor da gentalha romana que foi, levando enramado de louros o ferro que matara Rossi, apupar e enxovalhar a sua nobre viuva. O povo de Lisboa bate-se nas revoluções e nos tumultos, é valente e audacioso, mas não enxovalha ninguem e sobretudo quem tem o coração golpeado pela dor. As duas Rainhas, nos seus paços, choraram, sem ultrage de ninguem, a dor que as feria e os cadaveres do Rei e do Principe recolheram a S. Vicente, após longo trajecto, sem affronta ou desrespeito de ninguem.

(...)
Eu nunca tive odio ao Rei D. Carlos. Nem odio activo, porque sempre o julguei mais um producto do meio dissoluto em que vivia do que o autor unico e autonomo dos maleficios que na historia ficam registados sob a chancella da sua mão real; nem odio passivo, isto é, essa animadversão reflexa que a gente como que instinctivamente sente, como represalia, pelas pessoas que nos detestam. Sempre me imaginei um modesto operario da republica, obscuramente lançando o bico da minha picareta contra a rocha do preconceito despotico que cada vez mais esmaga a minha patria, e, portanto, a coberto de qualquer especialização que, nas suas vistas, o Rei D. Carlos pudesse lançar sobre os inimigos do seu throno. Nas palavras, pois, que vou dizer, não ha sombra de suspeição. Ora é certo que o Rei D. Carlos, nos ultimos annos do seu reinado, estava inteiramente desintegrado da sympatia geral da nação e, nos ultimos meses da sua vida, pode affirmar-se sem offensa para a sua memoria - e a memoria dos mortos só é offendida quando a seu respeito se altera a verdade - pode affirmar-se que elle era francamente detestado.

O Sr. Presidente: - Peço a V. Ex.ª que se abstenha de discutir a pessoa do Rei.

O Orador: - O Rei, á face da carta e do regimento d'esta Camara, só é indiscutivel quando está vivo. D. Carlos está morto e portanto pertence á historia. Demais, Sr. Presidente, eu faço parte de um partido que tem representação legal e numerosa nesta casa e que aqui foi atacado pelo leader de uma facção que está amparando o Governo. Ninguem pois me pode tirar o direito de defender esse meu partido e para o defender é indispensavel que eu desvende a psychologia do Rei que morreu. Estou, de resto, fazendo-o com toda a correcção e hombridade e V. Ex.ª não me pode impedir de falar. 

(Os Deputados republicanos e dissidentes appoiam vigorosamente o orador.)

Tem-se dito que D. Carlos era um homem ousado; tem-se dito que era um homem medroso. Nem uma cousa nem outra. Ou por outra, ambas as cousas, porque havia no espirito do Rei uma luta constante entre dois factores de energia differente, de maneira que, conforme a victoria passageira de um d'elles, assim a resultante psychica era diversa. Nas suas arterias arrastava-se o sangue molle, espesso e commodista dos Braganças e girava o sangue irrequieto e altivo dos Saboyas. Lutavam um com o outro com exito de acaso, porque se o sangue de Victor Manuel era vivo e audacioso o outro resistia-lhe pela passividade da inercia. Havia todavia aqui, e alem, desiquilibrios no embate e de ahi vinha que momentaneamente a personalidade do Rei se salientava conforme o factor que tinha vencido. Se triunfava o plasma brigantino, o Rei ficava-se numa espectativa medrosa. Venciam os globulos de Saboya, o Rei lançava-se num arranque de audacia. Na carta dirigida a Hintze, quando D. Carlos diz que «mal vae para os que só pelo terror se podem impor» era o descendente de D. João VI quem falava. Na entrevista com Galtier, quando elle chamava para si todas as responsabilidades, foi o neto de Victor Manuel quem tomou a palavra. Mas na primeira não é difficil descortinar o Saboya estimulando o Bragança, nem na segunda é preciso trabalhar muito para ver o Bragança a moderar os impetos do Saboya. E assim foi a sua vida toda. Através d'esses desequilibrios, que oscilavam entre estes dois polos, o Rei Carlos foi vivendo e amparando-se. Se no momento extremo da sua existencia, quando elle lutava com as vagas de uma procella temivel, João Franco, o fatidico, o não seduzisse atirando-lhe o decreto de 31 de janeiro como uma boia, o Rei tinha um meio de salvar-se que certamente adoptaria: era deixar triunfar dentro de si o sangue de Bragança, que o levaria para a abdicação e para o exilio, mas no entanto para a liberdade e para a vida. Assim não aconteceu. Forte da sua boia de salvação, o Rei nem pensou que ella era de chumbo, e que o havia de arrastar para o fundo onde, á falta de oxygenio, morreria asphyxiado. Porque effectivamente foi essa amorte do Rei: as asphyxia moral. O meio que lhe criaram em volta era de tal ordem que se lhe tornou irrespiravel. Não tinha ninguem por si a não ser os homens que o perderam, João Franco e os seus companheiros, que, depois de desafiarem a nação como quem desafia uma fera, fizeram antepara do corpo do Rei, lançando-o de encontro á fera, para que ella o despedaçasse emquanto elles fugiam. D'ahi vem o eu ter dito um dia o que repito agora: de todos os homens da ditadura, só o Rei foi até ao fim. Talvez contrafeito, talvez sem vontade, provavelmente amedrontado. Mas foi, e é esse o facto que permanece. Tal era D. Carlos.

Reparemos agora no scenario em que elle movimentava o seu gesto de Rei absoluto. A ditadura, de audacia em audacia, tornava-se insuportavel. A nação, sob o joelho d'esse despotismo raivoso, estertorava. Os decretos de excepção succediam-se. Abriam-se devassas. Organizavam-se listas de proscrição. Criavam-se alçadas como a do Juizo de Instrucção Criminal (decreto de 21 de novembro), pensava-se já em exilar, em degredar. Alguns chefes republicanos foram presos. A revolução levedava num fermento de raiva estuante. Não se podia mais e o 28 de janeiro teve logar, não para executar Ministros no Terreiro do Paço, como aqui foi cavilosamente insinuado pelo Sr. Malheiro Reymão, mas, movimento patriotico e generoso, para redimir a nação da sua ignominia tremenda. Foi infeliz, porque morria ao nascer. Mas como ainda podia soltar algum grito, ou ter algum tregeito, surgiu o decreto de 31 de janeiro, obra pavorosa do derrancado engenho e criminoso despotismo, a obra mais nefanda de toda a legislação portuguesa, por meio da qual, Sr. Presidente, o Ministerio, parte e juiz no processo, podia liquidar os seus adversarios politicos e pessoaes com um traço de penna, sem julgamento, sem defesa, sem appelação, tirando á victima todas as honras, todos os direitos, todas as regalias. Esse decreto é uma cousa atroz, que seria impossivel na Turquia, de que nunca poderiam lembrar-se os legisladores de Marrocos. Disse que era a obra mais hedionda de toda a legislação portugesa. É verdade. Nunca em Portugal se fez cousa assim. D. Fernando de Bragança, accusado de attentar contra a autonomia da patria e contra a vida de D. João II, foi julgado em Evora e teve dois defensores. O Marquês de Montemor, irmão do Duque, foi julgado em estatua com todas as suas armas e bandeiras. Quando D. João II matou o Duque de Viseu fê-lo deante de duas testemunhas, para que pudessem depor no processo que havia de seguir-se. Regular foi o processo do Duque de Caminha, accusado de atraiçoar a patria e tentar mater o Rei D. João IV. Os Tavoras, Aveiro, Alorna e Atouguia, que pretenderam matar D. José, foram cruelmente executados, mas após sentença regularmente proferida, apesar de se estar em tempo de pleno absolutismo. O proprio Gomes Freire, victima, com os seus companheiros, de uma das maiores infamias de que fala a historia, foi julgado e ouvido, teve testemunhas e teve defensores. Só João Franco foi adeante de todos em crueldade e descaro, porque elle e os seus cumplices do Ministerio, com uma palavra, eliminavam os homens do seu desagrado por culpas ligeiras e até imaginaveis. A historia nunca terá palavras sufficientemente violentas para castigar esta obra liberticida, que não só é desharmonica com a civilização, mas ainda vae de encontro aos principios mais fundamentaes da propria natureza humana. Mas não ataquemos mais esse miserando franquismo, Sr. Presidente. Elle está morto, porque, como já mais de uma pessoa disse, como partido, esse franquismo de má sorte suicidou-se nesta casa, na segunda-feira passada, pela boca do Sr. Malheiro Reymão. Eu continuarei falando nelle como episodio historico que foi, mas só isso. Não é possivel que homens de bem batam em cadaveres... Simplesmente o franquismo se não deixou morrer de exhaustão, preferindo destruir-se pelo suicidio. Aconteceu-lhe como aos paranoicos, que, depois de terem passado pelas furias do delirio, aproveitam as ultimas forças do seu braço para levarem ao peito a lamina com que se atravessam. E de notar, todavia, que o franquismo ao vir aqui, na segunda-feira, ainda nos quis dar uma representação da facilidade com que antigamente fazia as suas transformações fregolicas. Assim, em tres quartos de hora elle se nos apresentou com tres feitios diversos. Primeiro vem com o manto de penitente e camandulas na mão declarar aos rotativos que os não hostilizará. Abjura de tudo o que disse no poder e, apesar de algumas insinuações, quasi pede misericordia. Os senhores rotativos andaram com sorte. Culpados de não terem guerreado a ditadura com a energia com que deviam, depondo o Rei pelas armas e derrubando João Franco com o estrondo que era mester, antes aquietando-se medrosamente, teem ao menos a satisfação de ver agora esse arrogante inimibo de outrora acurvado e submisso. Foram felizes! Depois, o franquismo veste a alva do condemnado e pede que o julguem, dizendo, todavia, na sua voz sibylina, que Lisboa esteve em riscos de ser chacinada a bombas de dynamite. A proposito eu lhe direi, lá para o fim do meu discurso, que uma bomba de dynamite, nas mãos de um revolucionario leal e bem intencionado, é uma arma bem mais nobre...

Vozes da direita: - Não apoiado, não apoiado.

O sr. D. Thomas de Vilhena: - Isso é uma doutrina terrivel. As bombas são um attentado social. 

(Estabelece-se agitação. Os republicanos e dissidentes apoiam o orador. O Sr. João Pinto dos Santos erguendo-se e batendo sobre a sua carteira reclama vehementemente a liberdade da tribuna).

O Orador: - Aquietae os vossos nervos, cidadãos irreprimiveis. Eu tenho a coragem civica de dizer todo o meu pensamento. E hei de dizê-lo. Uma bomba, nestes casos, é bem mais leal do que o decreto de 31 de janeiro. Esse cobarde decreto foi um punhal applicado ao pescoço da nação, peor do que o punhal miguelista, do que o punhal cabralista, do que o punhal corso, porque era... o punhal regenerador-liberal.

Vozes da direita: - Apoiado, apoiado. Assim, sim, está bem.

O sr. D. Thomas de Vilhena: - Apoiado. Muito bem. Estamos de acordo.

O Orador: (acudindo a um áparte, que mal se percebeu, vindo das bancadas da maioria): - Logo conversaremos e então lhes demonstrarei que a bomba de dynamite, em revolução e em certos casos, pode ser tão legitima, pelo menos, como as granadas de artilharia, que não são mais do que bombas legaes, explosivos ao serviço da ordem. Depois, finalmente, o franquismo veste a alva do condemnado e entra de vez no fundo do tumulo. Podia ao menos suicidar-se como o grego da lenda, que depois de abrir a propria cova, antes de se matar, ainda soltou da flauta de barro um hymno valoroso á sua raça. Mas elle não. Entrou para o seu coval como devia, ao som d'aquella melopeia aqui cantada pelo Sr. Malheiro Reymão e que dizia - «liberdades e vida correram risco de perdimento e de morte», isto é, morreu tendo a rezar-lhe os psalmos finaes uma carpideira do Minho. Parce sepultis. Se a paz pode ter debaixo da terra quem, á sua superficie, tanto promoveu a guerra. Se é que pode ter socego, no seu tumulo, quem, em vida, tão larga sementeira fez de odios e rancores. Continuando. Neste momento, todos nós o sabemos, a tensão dos espiritos era medonha. A alma portuguesa refervia o cachão das coleras tremendas. Centenas de pessoas presas. Preparavam-se os barcos que as haviam de levar ao degredo. Que horrores se não iriam soffrer nas casamatas de Angola, nas fortalezas de Africa, de tão tragica nomeada? É nesse momento que Buiça e Costa surgem como o seu braço armado. Elles, como illuminados, julgam-se os legitimos interpretes do espirito nacional opprimido. Suppõem-se, no seu delirio, os mandatarios da nação encolerizada, e, no momento, sem talvez saberem como, sem bem talvez saberem porquê, manejam as armas que victimaram o Rei e o filho desventurado e innocente. Foi isto mau? Sem duvida. Eu fui sempre contra todos os attentados, Sr. Presidente. Não podia, pois, abrir excepção a este. Matar é sempre matar. E se matar em todas as condições é sempre mau, matar mesmo naquellas não podia ser bom. O Directorio do partido republicano tem sido accusado de não protestar contra a tragedia do Terreiro do Paço. Injusta accusação. O Directorio não tinha que protestar posthumamente, porque o tinha feito com antecipação. No seu manifesto ao país, com data de 26 de janeiro, na perspectiva, que todo o mundo julgava possivel, de retaliações pessoaes, o Directorio declarava-se terminantemente contra a suppressão das pessoas. Falou claro e a tempo. E se depois d'isso não voltou a falar, é porque a amnistia ainda não tinha sido dada, e o Directorio, no pleno direito de se comprometter a si, não tinha direito de ir comprometter os outros. Sim. Nem o Directorio nem eu individualmente approvamos a morte do Rei; mas, apreciando as cousas com fria reflexão, não vemos em Buiça e Costa dois matadores vulgares. Elles não mataram pelo prazer de matar, mas porque julgavam dar aos seus concidadãos uma liberdade que lhes tinha sido roubada. Isso desfará perante a historia as suas responsabilidades. Creio bem que, se elles ressuscitassem agora, de novo dariam a vida para fazerem sair do tumulo o Principe Real. E quanto ao Rei, se o viessem encontrar vivo, tenho a convicção de que o não matariam segunda vez. As cousas são o que são, Sr. Presidente. Quem teve culpa da morte do Rei foi elle proprio e a ditadura que o arrastou para a perdição. O Rei D. Carlos não foi morto pelo impulso determinado de consciencias pervertidas. Foi morto por uma descarga irreprimivel e fatal do espirito publico electrizado até á exaltação. Como do choque de duas nuvens salta o raio que inconscientemente tudo despedaça, assim a tragedia do Terreiro do Paço foi o producto do choque entre o espirito da nação anciosa de liberdade e o poder prenhe de despotismo. O Buiça e o Costa aqui são quasi nada. São os rotulos de um facto collectivo, simbolos de uma explosão sinergetica que pertenceu a todos. Foi um bem? Não. Mas tambem a epilepsia é um mal e ninguem torna as culpas nem ao epileptico nem á sua doença. Ora Buiça e Costa foram a crise epileptica da nação. O que é deveras lamentavel, Sr. Presidente, é que houvesse um Rei que por sua culpa e por culpa dos outros se collocasse em circunstancias taes de divorcio com a nação que a sua morte desse uma sensação de allivio a toda a gente. Foi o que aqui se deu, e eu sinto-o em nome dos inauferiveis direitos da natureza humana, que nunca devia ter caído, que nunca devia ter baixado tanto. Tem duvidas o Sr. Pereira dos Santos sobre o que eu digo? Pois, para se elucidar, queira ouvir o seguinte trecho do Diario Popular, orgão do seu partido, publicado nos fins de fevereiro: 

«Uma revolução não se faz sem haver-se criado antes uma, digamos assim, «atmosfera revolucionaria». Esse estado sensivel da mentalidade collectiva esteve criado, existiu fortemente carregado de nuvens ameçadoras, mas purificáram-no os acontecimentos, como os raios limpam os ares depois das tempestadas».

Isto dispensa commentarios. Passo adeante. Exposta esta doutrina, que se me afigura verdadeira, é facil explicar a manifestação ao cemiterio. Quem a fez? Uma multidão anonyma, composta de gente de todos os partidos, de curiosos e de flaneurs que foram ao coval dos regicidas com intuitos diversos, mas na concepção simplista de que elles tinham sido os libertadores, visto que as multidões, nos seus raciocinios elementares, não sabem distinguir criterios muito profundos. O discorrer é superficial e mesmo as ideias mais simples só são admittidas em bloco. A multidão não conhece as «nuances» porque só vê os phenomenos em conjunto. Mas esse aceita-o segundo a sua interpretação exagerada, sem vacilar, porque não conhece a duvida nem a incerteza. No fundo, a multidão é religiosa. Precisa de materializar em heroes ou em santos os seus sentimentos queridos se aquelle que lhe impressionou a imaginação fica sendo, até ser substituido por outro, o idolo maximo da sua crença. Isto é trivial, isto é banal. Anda nos manuaes de psychologia e já era conhecido de Napoleão I, que terminou a guerra da Vendêa fazendo-se catholico, estabeleceu-se no Egypto fazendo-se musulmano, venceu a Italia dos padres fazendo-se ultramontano, e, conforme elle dizia, teria restabelecido o templo de Salomão se houvesse de governar um povo de judeus. 
Ora a multidão que foi ao cemiterio, respirando a liberdade, viu em Buiça e Costa os autores d'essa liberdade. Tendo junto de si as pessoas queridas que lhe foram sequestradas, viu nos regicidas a causa d'essa felicidade, e, notando que a tyrannia tinha, pelo menos de momento, acabado em Portugal, viu nelles os fautores da libertação. Acrescente-se que o povo português é sentimental e de uma facil impressionabilidade, que elle encontrou aquella formula para protestar contra a morte violenta que foi dada aos regicidas, e, sobretudo, ao innocente Sabino da Costa, e ter-se-ha a explicação do phenomeno, que não é senão a copia, aliás descolorida, do que, ainda ha bem poucos dias, em 29 de março, se realizou em Paris e que se tem dado em tantas outras partes do mundo. 
O que se passou em Paris, ha dois meses, nos funeraes de Guerchounni é caracteristico, e o Sr. Pereira dos Santos precisa de o conhecer, para, de futuro, ser mais cauteloso nas suas temerarias apreciações. Guerchounni, velho presidiario e banido russo, revolucionario e terrorista, morrera em Zurich, e o seu cadaver foi conduzido para Paris, para ser inhumado ao lado do de Labroff. Os seus funeraes foram uma cousa estupenda. Mais de 10.000 pessoas, numa ordem perfeita, acompanharam o cadaver ao cemiterio Montparnasse. O carro de respeito ia literalmente coberto de coroas (eram mais de 200), enviadas de muitas partes do mundo, e o caixão do revolucionario desapparecia sob um montão de papoulas, cravos e outras flores rubras.

O Sr. Presidente: - São sete horas e V. Ex.ª está falando ha 65 minutos. V. Ex.ª pode porem occupar ainda, alem da hora regulamentar, o tempo que lhe resta para terminar o seu discurso.

Vozes: - Fale. Fale.

O Orador: - Agradeço a V. Ex.ª e á Camara e vou esforçar-me por ser o mais resumido possivel.

Vozes: - Fale. Fale.

O Orador: - Á volta do feretro os refugiados russos, á moda do seu país, davam-se as mãos, fazendo um circulo movimentado, e, a pé, num desfile heroico, os comités revolucionarios de Inglaterra, da America, da Allemanha, da Hungria, da Belgica, etc., comboiavam o grosso dos manifestantes, que occupavam mais de kilometro e meio do trajecto. Uma mulher, companheira de prisão do revolucionario morto, de tranças descaidas, e os olhos absortos, avançava numa attitude espectral, e um velho revolucionario de cabellos brancos, tendo nas espaduas o vergão dos chicotes da Siberia e no olhar o traço sombrio dos inenarraveis tormentos, levava na mão uma grande coroa de espinhos, que era a offerenda simbolica da Russia revolucionaria ao grande lutador. 
No cemiterio, sobre um estrado coberto por um roçagante pano vermelho, proferiram-se 27 discursos, exaltando a obra, os soffrimentos do «grande banido». Falaram deputados, chefes de partidos, jornalistas, homens de letras e tribunos. E sabe V. Ex.ª, Sr. Presidente, e a Camara, quem era este Guerchounni, que assim foi celebrado? Na emergencia, o telegrapho o disse a todo o mundo. Era o chefe da organização de combate do partido terrorista russo, era numa palavra, o homem que planeara, deliberara, determinara o assassinato de Nicolau de Plewhe, Ministro do Interior da Russia, morto ha tres ou quatro annos. E, todavia, ninguem se lembrou de prohibir aquella manifestação, nem Paris, que a viu deslizar pelas suas ruas, e para ella concorreu fartamente, engrossando-lhe as fileiras, se considerou deshonrada. O proprio Temps, o perfido Temps, que tantas censuras nos tem dirigido, descreve esse acto nas suas columnas sem uma unica palavra de reprovação e tão naturalmente como costume descrever o estado da praça commercial, ou do movimento literario. São estas cousas boas? Não, mas ellas são producto do tempo e dos acontecimentos. Emquanto houver tyrannos ha de haver quem sinta prazer com a sua destruição, e, portanto, tenha benevolencia para quem os aniquilou. Encarar as cousas sob o ponto de vista alto da philosophia pura é facil para os homens cultos, como seres individuaes, mas impossivel para esses seres collectivos simplistas e exagerados que se chamam multidões. É claro que os argumentos especiosos fervilham sempre nestas conjunturas e a logica, victima de todos os atropelos, desasada e claudicante, sempre encontra a que se agare. Assim, se disse que a manifestação tinha sido, alem de torpe, malvada, porque nem sequer tinha respeitado, na sua infinita desolação, a dor acerba da Rainha, que estava chorando o seu filho perdido. Nada tem uma cousa com a outra, Sr. Presidente. A dor da Rainha toda a gente a respeita e não ha ninguem que legitimamente pudesse ver naquella manifestação ao coval dos regicidas um ultrage para a sua magua de viuva e mãe pesarosa. Por mim, ando pouco no habito de me deixar impressionar pelos apparatos ostentosos da dor, e para a minha sensibilidade mais vale uma cabana alagada de lagrimas do que um palacio afogado de crepes.

Escusa V. Ex.ª de se preoccupar, Sr. Presidente. Tenho mostrado, em differentes combates nesta casa, que sei tratar os meus adversarios, quando elles são homens, com lealdade. Mais uma razão para tratar com nobreza a Rainha, que é uma senhora. Esteja V. Ex.ª descansado. No entanto, ia eu dizendo, este caso da Rainha é d'aquelles que impressionam. Não quando ella, com o seu veu descido e o seu braço hirto e seminú do qual caía a manga bordada de rendas caras, aponta o filho que é hoje Rei, e exclama para a assistencia que o rodeia: «É o que resta!» Mas ella é digna de lastima e compungida piedade, quando a gente a imagina rasgando o peito para arrancar o coração, partir este ao meio e atirar com cada metade para dentro de cada um dos tumulos entreabertos e, depois, com as mãos afflictas e ainda tremulas d'essa autovivisecação, apertar a cabeça onde o pensamento estala, para logo em seguida ir com ellas segurar o Throno do filho que a procela da revolta popular furiosamente agitava. Então, sim, a Rainha é grande, porque pela primeira vez na vida ella é humilde, baixando á condição humana de uma pobre mulher soffredora, a essa condição tragica e dolorida em que a mulher, grande ou pequena, Rainha ou plebeia, boa ou má, pura ou peccadora, anjo ou demonio, é sempre o symbolo augusto da mãe criadora, que na dor continua a especie e, soffrendo, de si exhala, para nos noutros viver, a essencia da propria vida. Mas da mesma piedade e anciada ternura são dignas todas as mulheres que tiveram na conjuntura os seus filhos perdidos, porque a febre dos pantanos ou o ar pestilento das cadeias de Africa os havia de victimar a breve trecho, alanceando os seus peitos de mães carinhosas e rasgando-lhes a alma de mulheres amoraveis. Perante essa grande dor, - a dor da Rainha - outras immensas dores pois se levantaram, e as pessoas que foram ao cemiterio não pensaram no pesar da viuva do Rei com o fim de a ultrajar, mas na alegria de tanta mãe a quem os filhos foram restituidos após o acto dos regicidas, que para a sua concepção simplista foram dois libertadores. Estranha philosophia a dos acontecimentos historicos e formidavel contradição de vida essa que faz com que as lagrimas de uns sejam o allivio consolador d eoutros. Gosto eu d'isso? É claro que não. Mas que fazer-lhe, se o mundo tão atrasado não nos dá cousa melhor? Lá o disse o tragico antigo: é inexoravel condição do destino que cada passo que a humanidade avance no terreno da conquista seja marcado com uma pegada de sangue. E o poeta no rochedo do exilio vendo, um dia, o erguer e o desapparecer das ondas do mar, disse que era o cumprimento de um fado eterno o facto de a onda que se levanta ser desfeita á custa da onda que se desfez e em espuma se tornar a onda que foi e já não é...

O Sr. Moreira Junior disse aqui que a attitude dos partidos rotativos tinha tornado possivel a amnistia dos implicados no 28 de janeiro e que foram elles que deram liberdade aos presos politicos. Estranha comprehensão das cousas! O Sr. Moreira Junior é um medico muito distincto e como tal cheio de saber e de talento. Diagnostica a molestia dos seus clientes com rara competecia e o seu espirito de clinico poderoso e subtil penetra as pathologias mais complicadas. Como politico, porem, discorre á maneira de um collegial adolescente, de um estudantinho imberbe.

O Sr. Presidente: - V. Ex.ª tem um quarto de hora para terminar o seu discurso

O Orador: - Comprehendo que estou abusando da attenção da Camara.

Vozes: - Fale.Fale.

O Orador: - Sim, vou concluir, ainda que me é já impossivel expor hoje tudo o que tinha a dizer. De resto eu hei de falar outra vez, porque embora eu não goste demasiado da vida parlamentar, espero que não ha de ser esta a ultima vez que tome a palavra nesta Camara. Prefiro falar nos comicios em contacto com o povo. Estou ahi mais á vontade e aproveito lá melhor as minhas palavras. No entanto, como acceito sempre todos os legitimos campos da luta que se me offerecem, não dispensarei este no que, de resto, cumpro o meu dever de procurador do povo. Vejamos: 
D. Carlos saltou por cima da Carta Constitucional declarando-se Rei absoluto. Ora desde que isto aconteceu a obrigação dos monarchicos constitucionaes(para o caso dos regeneradores e progressistas) era accusá-lo e depô-lo, reunido as Côrtes dissolvidas. E se o despota quisesse reagir pela força, urgia que lles recorressem á força tambem, depondo-o revolucionariamente. A revolução em tal hypothese o mesmo era que legalidade. O chefe d'esse movimento não podia deixar de ser, á face da Constituição, o Principe Real, herdeiro do Throno. Alguns jornaes, mesmo, chegaram a esboçar este pensamento, aconselhando ao Principe que não fosse para a Africa, porque a Constituição estava correndo grandes perigos. Mas os monarchicos não tiveram coragem de ir por deante, e portanto em Portugal deixou de haver monarchia constitucional, isto é, o Estado legal desappareceu. 
Em tal hypothese, pois, a revolução republicana não era só um direito, era um dever. Desapparecera o estado juridico monarchico; não havia monarchicos que o quisessem restaurar; competia, não só por direito, mas por obrigação, ao partido republicano criar o estado legal republicano. Para conseguir isso, claro é que tinha de recorrer á força, visto que era na força que D. Carlos estribava a sua tyrannia. E não havia disciplina, nem rebellião. Pelo contrario, em rebellião estavam João Franco e o Rei. Nós iamos criar a lei nova numa terra onde lei não havia. Esta doutrina é inatacavel, tanto para os civis como para os militares. Bem. Mas esse proposito do partido republicano falhou, ficando reduzido á tentativa gorada de 28 de janeiro, que se propunha a dar, como sacrificio generoso da vida dos que nella entraram, a liberdade, a legalidade, o que equivale a dizer o direito e a justiça, á terra portuguesa escravizada. Seguram-se as perseguições, que não podiam ser feitas em nome da lei, porque lei não havia, mas que eram exercidas em nome da força, porque só a força imperava. 
Continuando.

D. Carlos e seu filho são mortos, e D. Manuel é proclamado Rei. Não foi um Rei constitucional que succedeu a outro Rei constitucional; foi um Rei, segundo a Carta, que succedeu a um Rei absoluto, Assim, D. Manuel teve de renegar, logo, uma grande parte da obra nefanda de seu pae, declarando-o implicitamente usurpador e despota. Foi uma verdadeira deposição moral. Somente o Rei não teve força para ir mais longe. Se fosse onde devia chegar, ordenaria a accusação criminal e politica de João Franco e mandaria pôr em liberdade todos os presos militares e civis, trancando-lhes os processos. Para que veio a amnistia, se não havia delicto? Ella só podia aproveitar á memoria do Rei e ao Ministerio franquista. Já vê o Sr. Moreira Junior que a generosidade da sua amnistia era dispensavel. Mais: ella chega a ser offensiva. A amnistia envolve a ideia do crime ou de falta. Aqui só houve crime ou falta por parte do ultimo Rei e do seu ultimo Ministerio. Mas a amnistia, apesar da logica das cousas, appareceu e, pimponando de mangnanimidade, vae deixar de banda os militares e os incursos no artigo 253.º do Codigo Penal. A monarchia mystificadora mostra neste acto de aparente clemencia todo o rancor dos seus instinctos. Os militares foram processados pelo crime de colligação, o que não obsta a que o Presidente do Conselho diga na Camara dos Pares, em resposta ao sr. Baracho, que elles estavam implicados na revolução. Por aqui se vê como tudo foi tecido para prejudicar os militares, que, se na verdade tinham o intuito de se revoltar, não fizeram mais do que a sua obrigação, porque elles não tinham que obedecer a uma monarchia que se proclamava absoluta, nem a um Rei, que ser arvorara em déspota e só lhes corria o dever de impor na sua patria, e pela força das armas, o imperio da lei. Se elles efectivamente tinham em mira criar um Estado novo na sua patria e onde Estado não havia, não foram criminosos, foram patriotas; e o Rei, subindo ao Throno, a primeira cousa que devia fazer era libertá-los, para provar, com lealdade, que o imperio da lei estava por elle restabelecido. E para se ver como a crueldade é retinta por parte do Governo, basta dizer que ha quatro meses que se encontram enclausurados em prisões rigorosas, quasi incommunicaveis, esses militares, cuja intervenção no acto revolucionario não está sequer averiguada. Isto revolta e indigna o homem mais passivo e brada á consciencia inaccessivel.

O Sr. Presidente: - Deu a hora.

O Orador: - Visto não ter mais tempo vou terminar, Sr. Presidente. O resto ficará para outra occasião e então não me cansarei de estygmatizar essa nodoa de sangue que a monarchia tem na sua consciencia e que foi a chacina de 5 de abril. Mais uma vez defenderei este meu velho e nobre amigo que se chama o Povo de Lisboa, que sabe cavalheirosamente bater-se nas revoluções e ser generosamente um adversario leal. 

(O orador foi apoiado algumas vezes por toda a Camara, bastantes vezes por dissidentes e republicados e frequentemente pela minoria republicana).

Fonte: Fundação Mário Soares

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