Fazer vinho no Douro ou em qualquer outra região portuguesa é um péssimo negócio. Só é viável se houver um outro bom negócio por trás a suportá-lo ou se se começar com uma boa herança, em vinhas e em dinheiro. As vinhas só não chegam.
Em 2012, fiz uma viagem com alguns colegas pelos vinhedos da Sogrape no Chile e na Argentina e vim de lá deprimido. A razão é prosaica, já verá. Em si, a viagem foi épica e inesquecível, em particular o percurso de carro entre Santiago e Mendoza através dos Andes. Seis horas com uma paragem (por sorte) curta na fronteira. De avião, são cerca de 40 minutos.
A travessia dos Andes, sempre em espiral por entre montanhas e desfiladeiros, tem algo de aventura e de religião. Apoderados de um sentimento de irmandade, os automobilistas vão trocando acenos solidários, esmagados pela beleza e grandeza do lugar. Com o olhar, não se alcança o gigantismo da cordilheira andina. A escala é inumana, oito mil quilómetros de montanhas ininterruptas desde a Venezuela à Patagónia. Uma delas, Aconcágua, é o ponto mais alto do continente americano, com 6962 metros de altura. Dizem que do seu cume se consegue perceber a curvatura da Terra no Pacífico.
Cruzada a fronteira, a 3800 metros de altitude, a estrada torna-se mais rectilínea e as montanhas vão ganhando tonalidades mais claras. Durante vários quilómetros, a estrada segue paralela a uma velha linha de comboio, o mítico Transandino que ligava Mendoza, na Argentina, a Santa Rosa de Los Andes, no Chile. Alguns troços da velha linha vão resistindo pendurados sobre o precipício, bem como a lendária Ponte do Inca, uma ponte natural formada pela erosão das águas minerais e que é umas das grandes atracções da travessia dos Andes no lado argentino. A partir de certa altura, perante tanta montanha, a monumentalidade dos Andes vai-se tornando monótona e o que começa a ganhar força é a ânsia do destino: Mendoza.
A capital do vinho argentino é uma espécie de Terra Prometida para a viticultura. O clima é muito seco (não chovem mais do que 200 milímetros por ano), os solos, de aluvião e com boa drenagem, são uma bênção para as videiras e a proximidade dos Andes assegura frescura e água para a rega. Como a maior das facilidades, é possível produzir 20 toneladas de uvas de qualidade por hectare. O rendimento é tão bom que é possível ter uma vida de luxo vendendo apenas uvas. Na altura, era assim. O rendimento médio por hectare era quatro a cinco vezes superior ao do Douro, por exemplo, e as uvas vendiam-se a mais do dobro. Eu, chegado do Douro, a dar os primeiros passos como produtor de vinho mas já com um histórico de uma década a vender uvas, fiz contas e, claro, fiquei deprimido.
Não foi a única vez. Na verdade, sempre que visito alguma região vinhateira de França, ou fico deprimido ou venho de lá com vontade de mudar de vida. Vinhos por vezes banais são vendidos, à saída da adega, ao preço dos nossos grandes reservas, garrafeiras e toda a sorte de designações premium. Agora vem o choradinho, que é a razão desta crónica: fazer vinho no Douro ou em qualquer outra região portuguesa é mesmo um péssimo negócio. Só é viável se houver um outro bom negócio por trás a suportá-lo ou se se começar com uma boa herança, em vinhas e em dinheiro. As vinhas só não chegam.
O produtor típico de vinho entre nós é um personagem simpático que começa sempre cheio de sonhos. O maior de todos é fazer o melhor vinho do mundo — e logo ao primeiro ano. Anda nessa esperança uma meia-dúzia de anos, mais ou menos o tempo que precisa para começar a perceber que só uns poucos conseguem vender vinhos a preços elevados de forma consistente.
As primeiras produções, quase sempre pequenas, vendem-se bem. São uma novidade e o mercado alimenta-se de novidades. O produtor típico empolga-se e só lamenta não ter começado mais cedo. A dada altura, há novidades de outros produtores a saírem todos os dias e o mercado, que gosta de novidades mas não é elástico, nem fiel, começa a descartar uns quantos. O produtor típico assusta-se e percebe o sinal: está na hora de lançar um vinho de combate, bonzinho e baratinho, para ir pagando as despesas. Começa com 10 mil garrafas, depois passa para 20 mil e vai aumentando, aumentando, até se dar conta de que há qualquer coisa que não bate certo: como vende cada vez mais, vê-se obrigado a investir cada vez mais e o dinheiro é cada vez menos, ao contrário das dívidas, que não param de aumentar. É então que começa a olhar para o negócio com a frieza do economista e descobre o logro em que se meteu. Quando se deixou encantar pela ideia romântica e poética de produzir vinho, ninguém o avisou de que não ia vender só vinho. Ia vender também rolhas, vidro, caixas, selos, rótulos e cápsulas. E também não pensou bem nos tempos de pagamento. Um vendedor de cubas, barricas e de tudo o que se usa no vinho, quer receber em dois meses, no máximo; o produtor típico recebe, com sorte, a 90 ou a 120 dias — e às vezes não recebe nada. Mas, antes de receber, tem que pagar as uvas, fazer o vinho e suportar o seu estágio na adega. E, pelo meio, passa uma parte do ano em feiras cá e lá fora e outra parte em apresentações, almoços e visitas, sempre a oferecer vinho.
Sim, há quem ganhe dinheiro no glamoroso negócio do vinho. Há meia dúzia de grandes empresas que ganham dinheiro. Quem compra uvas e faz vinho em adegas de outros consegue ganhar algum dinheiro. Quem começou com algum património, apostou sempre em qualidade e trabalha desalmadamente, com prejuízo pessoal e da família, também ganha dinheiro. Produtores como Luís Pato ou Domingos Alves de Sousa, por exemplo, ganham dinheiro, mas ninguém imagina o quanto têm trabalhado. Andam a servir copos e a contar estórias pelo mundo há três décadas sem parar. E três décadas não são nada no negócio do vinho.
Não há muitos como eles em Portugal. O que há, de sobra, é uma legião de pequenos produtores que só sobrevivem porque não incorporam o seu trabalho no custo do vinho e uma outra legião de pequenos/médios produtores como o nosso produtor típico que se encontram na mesma situação do tolo no meio da ponte: já gastaram de mais para desistir e tem cada vez menos dinheiro para continuar. No final da história, alguns hão-de salvar-se.
Só mais uma coisa: perguntem ao produtor típico se trocava a sua vida por outra. Claro que não!
Pedro Garcias
Jornal Público
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