Foto: Adriano Miranda |
Eu não compro nenhum vinho em função das medalhas que obteve, mas admito que possa ajudar. Quem percebe algo de vinho tende a olhar para o negócio em função das suas preferências e esquece-se facilmente de que a maioria dos consumidores percebe muito pouco. O grosso do vinho que se consome é comprado em função do preço e da imagem. De modo que as medalhas, sobretudo nos segmentos mais baixos, devem ser um bom estímulo. Se assim não fosse, como se explicaria a existência de tantos concursos no país e no mundo?
Em bom rigor, a maioria dos concursos de vinhos serve basicamente para três coisas: engrossar a conta bancária de quem os organiza (não entram aqui, claro, os concursos das comissões regionais de viticultura), valorizar vinhos maus e alimentar o ego dos produtores. Mas, por vezes, uma medalha pode ter o mesmo efeito de um jackpot. Lembram-se daquele vinho da casa Ermelinda de Freitas que, em 2008, foi eleito o “melhor Syrah do mundo”? Esse prémio fez disparar as vendas e foi decisivo para o crescimento da empresa.
De certeza que ninguém se recorda de qual foi o concurso. Na altura também pouca gente deve ter prestado atenção. O que ficou foi o sound bite. “Melhor tinto do mundo é português”, titulou o respeitado Expresso. As televisões fizeram o mesmo. O vinho apenas tinha obtido o prémio no Vinailes Internacionales, em França, um dos inúmeros concursos que acontecem todos os anos pelo mundo. Nem sequer é um dos mais prestigiados. Imaginem um filme português ganhar um qualquer festival de cinema e ser anunciado como o melhor filme do mundo? Seria a mesma coisa.
Poucos bons produtores enviam os seus melhores vinhos a estes concursos. Só isto devia ser suficiente para relativizar os resultados. Mas continua a dar-se uma importância excessiva a estes prémios, muito por culpa de quem escreve sobre vinho, é preciso dizer-se. E não é só na questão dos prémios. No mundo do vinho, há ainda um claro défice de informação. Existe muita propaganda e publicidade e pouco jornalismo. Somos todos, e acima de tudo quem escreve, demasiado acríticos.
No vinho, o que conta cada vez mais é o embrulho. Tudo é “family estates”, tudo é “since”, tudo é “vinha velha”, tudo é “orgânico”. O mais importante é a “história”. Um vinho, para se vender, estão sempre a dizer-nos os gurus da coisa, tem que ter uma boa história por trás. E se não houver uma boa história para contar? Inventa-se. As pessoas gostam de historinhas e de ser enganadas. E quem escreve também não se importa muito com isso.
Tenho que admitir e fazer mea culpa: no vinho funciona-se muito como no futebol. Vê-se mesmo que estamos a ser enganados, mas vamos dizendo amém a tudo. Será suficiente limitarmo-nos a avaliar se um vinho é bom ou não? Não devíamos questionar mais as bonitas histórias que muitos produtores nos contam? Devíamos, sim. Devíamos questionar muito mais, questionar tudo, até a propriedade de certos projectos e a origem do dinheiro.
Isto leva-nos a outra questão, ainda mais complexa: devemos dissociar a “pessoa” da sua obra? Vamos imaginar uma grande empresa de vinhos que se recusa a identificar os seus proprietários, para eludir a origem do dinheiro, ou um produtor que vive de esquemas, mas que faz grandes vinhos. Devemos escrever sobre os vinhos e esquecer a ética dos seus criadores?
Outro exemplo: um narcotraficante comprou uma quinta e agora faz vinhos belíssimos. O que fazemos? Escrevemos sobre os vinhos e esquecemos o que está por trás deles? E aqueles empresários que fizeram fortunas com os bancos cuja falência foi suportada por todos nós e agora se dedicam a fazer vinho? Vamos fechar os olhos e branquear a sua actuação, em nome da “obra”, que neste caso é o vinho?
O mundo está cheio destes dilemas. Criadores extraordinários como Wagner, Degas, T.S.Eliot ou Celine defendiam, ou chegaram a defender em certas fases das suas vidas, ideias anti-semitas. Camilo José Cela foi bufo de Franco e Lorde Byron cometeu incesto. Picasso era misógino e Caravaggio assassinou um homem. No cinema, como se está a ver com o caso Harvey Weinstein, são inúmeros os casos de produtores, actores ou realizadores consagrados que tiveram comportamentos desprezíveis. Há diabos com caras de anjos em todas as actividades.
Quando a estética ou a simples criação se confundem com a ética, o que devemos fazer? Já se escreveram tratados só para responder a esta questão, não sou eu que vou dar “a resposta”. Gostar de Celine não faz de mim um anti-semita, nem me devo sentir pedófilo ao ver um filme de Polanksi ou ler Lolita, de Nabokov. Nestes e noutros casos, as obras deixaram de pertencer apenas aos seus criadores, ganharam vida própria, e o mais importante é o que cada um de nós faz com essas obras.
Mas, tratando-se de criadores vivos, devemos olhar apenas para a sua obra e ignorar a sua ética? Lobo Antunes, por exemplo, escreve admiravelmente, mas é um vaidoso e um arrogante refinado. Devemos boicotá-lo? Neste caso, não tenho qualquer dúvida: não. A “higienização” dos nossos ídolos é uma utopia e nem sequer seria uma coisa boa. Além de que os crimes e os erros não são todos iguais. Se Lobo Antunes fosse pedófilo, seria diferente. Olhar apenas para a sua obra, sem o denunciar, faria de nós cúmplices de um comportamento criminoso e eticamente reprovável.
Nos vinhos é a mesma coisa. Conheço produtores que são uns arrogantezinhos mas que fazem vinhos muito bons. Posso sentir-me tentado a não gastar um euro com eles, mas não tenho o direito de os boicotar ou avaliar mal só porque os seus criadores não são pessoas recomendáveis. Se um criador for mais do que vaidoso ou arrogante e produzir os seus vinhos com dinheiro obtido de forma criminosa, é diferente. Sabendo do crime, tenho a obrigação moral de o denunciar. Não o fazendo, faz de mim cúmplice.
Pedro Garcias
Jornal Público
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