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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 23 de junho de 2018

Engana-me que eu gosto e outras considerações sobre o lado negro do vinho

Tenho que admitir e fazer mea culpa: no vinho funciona-se muito como no futebol. Vê-se mesmo que estamos a ser enganados, mas vamos dizendo amém a tudo.
Foto: Adriano Miranda
Há garrafas de vinho com tantas medalhas que parecem a farda de um militar cheio de condecorações. Será que isso ajuda a vender?

Eu não compro nenhum vinho em função das medalhas que obteve, mas admito que possa ajudar. Quem percebe algo de vinho tende a olhar para o negócio em função das suas preferências e esquece-se facilmente de que a maioria dos consumidores percebe muito pouco. O grosso do vinho que se consome é comprado em função do preço e da imagem. De modo que as medalhas, sobretudo nos segmentos mais baixos, devem ser um bom estímulo. Se assim não fosse, como se explicaria a existência de tantos concursos no país e no mundo?

Em bom rigor, a maioria dos concursos de vinhos serve basicamente para três coisas: engrossar a conta bancária de quem os organiza (não entram aqui, claro, os concursos das comissões regionais de viticultura), valorizar vinhos maus e alimentar o ego dos produtores. Mas, por vezes, uma medalha pode ter o mesmo efeito de um jackpot. Lembram-se daquele vinho da casa Ermelinda de Freitas que, em 2008, foi eleito o “melhor Syrah do mundo”? Esse prémio fez disparar as vendas e foi decisivo para o crescimento da empresa.

De certeza que ninguém se recorda de qual foi o concurso. Na altura também pouca gente deve ter prestado atenção. O que ficou foi o sound bite. “Melhor tinto do mundo é português”, titulou o respeitado Expresso. As televisões fizeram o mesmo. O vinho apenas tinha obtido o prémio no Vinailes Internacionales, em França, um dos inúmeros concursos que acontecem todos os anos pelo mundo. Nem sequer é um dos mais prestigiados. Imaginem um filme português ganhar um qualquer festival de cinema e ser anunciado como o melhor filme do mundo? Seria a mesma coisa.

Poucos bons produtores enviam os seus melhores vinhos a estes concursos. Só isto devia ser suficiente para relativizar os resultados. Mas continua a dar-se uma importância excessiva a estes prémios, muito por culpa de quem escreve sobre vinho, é preciso dizer-se. E não é só na questão dos prémios. No mundo do vinho, há ainda um claro défice de informação. Existe muita propaganda e publicidade e pouco jornalismo. Somos todos, e acima de tudo quem escreve, demasiado acríticos.

No vinho, o que conta cada vez mais é o embrulho. Tudo é “family estates”, tudo é “since”, tudo é “vinha velha”, tudo é “orgânico”. O mais importante é a “história”. Um vinho, para se vender, estão sempre a dizer-nos os gurus da coisa, tem que ter uma boa história por trás. E se não houver uma boa história para contar? Inventa-se. As pessoas gostam de historinhas e de ser enganadas. E quem escreve também não se importa muito com isso.

Tenho que admitir e fazer mea culpa: no vinho funciona-se muito como no futebol. Vê-se mesmo que estamos a ser enganados, mas vamos dizendo amém a tudo. Será suficiente limitarmo-nos a avaliar se um vinho é bom ou não? Não devíamos questionar mais as bonitas histórias que muitos produtores nos contam? Devíamos, sim. Devíamos questionar muito mais, questionar tudo, até a propriedade de certos projectos e a origem do dinheiro.

Isto leva-nos a outra questão, ainda mais complexa: devemos dissociar a “pessoa” da sua obra? Vamos imaginar uma grande empresa de vinhos que se recusa a identificar os seus proprietários, para eludir a origem do dinheiro, ou um produtor que vive de esquemas, mas que faz grandes vinhos. Devemos escrever sobre os vinhos e esquecer a ética dos seus criadores?

Outro exemplo: um narcotraficante comprou uma quinta e agora faz vinhos belíssimos. O que fazemos? Escrevemos sobre os vinhos e esquecemos o que está por trás deles? E aqueles empresários que fizeram fortunas com os bancos cuja falência foi suportada por todos nós e agora se dedicam a fazer vinho? Vamos fechar os olhos e branquear a sua actuação, em nome da “obra”, que neste caso é o vinho?

O mundo está cheio destes dilemas. Criadores extraordinários como Wagner, Degas, T.S.Eliot ou Celine defendiam, ou chegaram a defender em certas fases das suas vidas, ideias anti-semitas. Camilo José Cela foi bufo de Franco e Lorde Byron cometeu incesto. Picasso era misógino e Caravaggio assassinou um homem. No cinema, como se está a ver com o caso Harvey Weinstein, são inúmeros os casos de produtores, actores ou realizadores consagrados que tiveram comportamentos desprezíveis.  Há diabos com caras de anjos em todas as actividades.

Quando a estética ou a simples criação se confundem com a ética, o que devemos fazer? Já se escreveram tratados só para responder a esta questão, não sou eu que vou dar “a resposta”. Gostar de Celine não faz de mim um anti-semita, nem me devo sentir pedófilo ao ver um filme de Polanksi ou ler Lolita, de Nabokov. Nestes e noutros casos, as obras deixaram de pertencer apenas aos seus criadores, ganharam vida própria, e o mais importante é o que cada um de nós faz com essas obras.

Mas, tratando-se de criadores vivos, devemos olhar apenas para a sua obra e ignorar a sua ética? Lobo Antunes, por exemplo, escreve admiravelmente, mas é um vaidoso e um arrogante refinado. Devemos boicotá-lo? Neste caso, não tenho qualquer dúvida: não. A “higienização” dos nossos ídolos é uma utopia e nem sequer seria uma coisa boa. Além de que os crimes e os erros não são todos iguais. Se Lobo Antunes fosse pedófilo, seria diferente. Olhar apenas para a sua obra, sem o denunciar, faria de nós cúmplices de um comportamento criminoso e eticamente reprovável.

Nos vinhos é a mesma coisa. Conheço produtores que são uns arrogantezinhos mas que fazem vinhos muito bons. Posso sentir-me tentado a não gastar um euro com eles, mas não tenho o direito de os boicotar ou avaliar mal só porque os seus criadores não são pessoas recomendáveis. Se um criador for mais do que vaidoso ou arrogante e produzir os seus vinhos com dinheiro obtido de forma criminosa, é diferente. Sabendo do crime, tenho a obrigação moral de o denunciar. Não o fazendo, faz de mim cúmplice.


Pedro Garcias
Jornal Público

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