Aldeia de Algoso |
Alfredo, Garbanzo e Aragão estão a postos. Ajeitam-se as albardas e os alforges coloridos, guardam-se as garrafas de água, preparam-se os caminhantes para o que aí vem: um passeio, (muito bem) acompanhado pelos três burros mirandeses, ao longo do rio Angueira, um dos cursos que atravessam Vimioso, em pleno Nordeste Transmontano. Entretanto, junto à água, uma figura aproxima-se, vinda da outra margem. Pé ante pé, de pedra em pedra, tem uma vara na mão e gestos precisos. Ocupa-se de uma minuciosa tarefa como se fosse dele, e de mais ninguém. O que faz, descobrimos à sua chegada até nós. Guarda-fiscal reformado, António Pires pastoreia por ali as suas cinco vacas — já teve mais, agora é só “para passar o tempo”. Deixou-as por momentos e, enquanto atravessa o rio, aproveita para limpar as folhas secas que se acumulam entre as pedras da passagem. “Para a corrente passar e para não cheirar mal”, explica, finda a missão, vara na mão e sorriso no ar.
Sem saber, sumariza-nos assim a orgulhosa relação que os vimiosenses têm com a sua natureza, com o seu território, com as suas tradições. E que se revela a par e passo, passo a passo.
Carolina Martins é uma das monitoras da AEPGA que acompanha o percurso |
Assim começa o percurso pedestre, que se for feito por inteiro leva o visitante pelas aldeias de São Joanico, Serapicos e Angueira, sempre com o rio por perto, ao longo de 22 quilómetros (não há que temer, o grau de dificuldade é fácil). Descobre-se o esplendor do verde do bosque, vêem-se pontes medievais e moinhos de água, cheiram-se rosas-de-lobo e medronheiros, com sorte até se distinguem lontras e guarda-rios, corços e libélulas. Não há que enganar: estamos no recém-inaugurado PINTA – Parque Ibérico de Natureza, Turismo e Aventura, um anfitrião por excelência da biodiversidade de um concelho que tem mais de 40% do território na Rede Natura 2000. E aqui Alfredo, Garbanzo e Aragão surgem como os mais charmosos e meigos mestres de cerimónia. Carolina Martins, uma das monitoras da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA) que acompanha o percurso, vai-nos dando conta da suas manhas. O primeiro, nota-se à distância, é o mais enérgico, ao contrário do último, o maior, mas também o mais pacífico. Já o Garbanzo é o mais influenciável: ou imita o Alfredo ou copia o Aragão. Hoje está sereno, já sabemos o que escolheu. “Para mim, a melhor coisa dos burros é que, apesar de estarmos diariamente com eles, apesar de estarem habituados à presença humana, a personalidade deles mantém-se bem vincada”, diz a jovem de 27 anos, preparando-se para desfiar outras características do animal. A saber: pesam em média 300 quilos, mas o ideal é que suportem até um terço do próprio peso; não gostam de água, banho é só mesmo quando tem de ser; vêem mal para baixo, tampas de saneamento ou passadeiras fazem-lhes muita confusão. E sim, como ajuíza o ditado, são teimosos: se, por exemplo, encontram uma poça de água e não conseguem distinguir o fundo, dificilmente arriscam. “Se não quiser andar, senta-se ou anda para trás”, evidencia. “A teimosia é sinal de inteligência.”
Rosa Delgado a fazer um escrinho |
Escrinhos até à Lua
Passear na companhia destes animais é uma das muitas coisas que se podem fazer no parque, onde a AEPGA dirige o Centro de Actividades Lúdico-Pedagógicas do Burro de Miranda (aos três peregrinos juntam-se ainda Ipiranga e Hortelão, que tanto podem ser companheiros de caminhada, como protagonistas de sessões terapêuticas e didácticas). Mas a oferta do PINTA não se fica por aqui. Quem quiser, pode sair para o terreno para caçar, identificar (e devolver) borboletas, fazer um piquenique num lameiro com um cesto recheado de produtos regionais, vinho e até uma manta ou, quem sabe, aprender tradições. E que tal começar a fazer escrinhos?
Um escrinho |
Desta feita, encontramos Rosa e Aníbal Delgado com uma pequena plateia de aprendizes de olhos pregados nas mãos dela. Daquela trabalhosa dança a dez dedos está sair aos poucos um cesto. Estamos a ver nascer um escrinho. Feitos com palha de centeio e casca de silva, estes cestos únicos, originais da aldeia de Vilar Seco, eram utilizados no passado para guardar cereais, sementes, farinha. Com o tempo, o saber foi-se perdendo, até que, há 12 anos, Aníbal candidatou-se à junta de freguesia da sua terra, determinado em não deixar a arte morrer. “Quase fiquei pela promessa”, confessa. Promoveram-se cursos, poucos quiseram aprender; ficou a sua esposa, “talvez por teimosia” dele, que assim se fez artesã há cerca de seis anos, para “não deixar perder a tradição”. É a única formadora; mais sabem fazê-los, mas não “têm vagar”, produzem “só em casa”. “Isto é só uma brincadeira, só me dá prejuízo”, diz ele, alisando vigorosamente uma silva na perna com uma navalha. Por causa da artrite reumatóide, os dedos fogem-lhe, não pode fazê-la serpentear pela palha, deixa-o para Rosa.
“Dá muito trabalho, ninguém quer aprender”, admite a sexagenária, que, por sua vez, à custa do labor, já sofreu uma tendinite no ombro. Hoje, já não se fazem tanto os verdadeiros escrinhos, mas aplica-se a mesma técnica para peças mais pequenas, como fruteiras, cestas, até máscaras e crucifixos. “Olha”, graceja Aníbal, apontando para o aprendiz João Rodrigues, “este já te tira a profissão”. E é vê-lo, a princípio incerto, depois mais confiante, a embrenhar as mãos naquele rodopio de palha e silvas. Veterinário, de 35 anos, veio a esta oficina gratuita para “matar uma curiosidade antiga”. Durante oito anos, viveu em Vilar Seco, onde chegou a experimentar fazer um escrinho; treze anos depois, viu neste encontro uma nova oportunidade para voltar a tentar.
Rosa Delgado ensina a fazer escrinhos |
Agora”, auspicia, “o próximo passo é criar peças de design, fazer coisas contemporâneas a partir da tradição, acompanhar os tempos”. Não ele, que não tem tempo. Outros. Talvez assim, com outros cestos, Vilar Seco chegue finalmente ao espaço. Conta Aníbal que reza a lenda que os habitantes, conhecidos como escrinheiros, tentaram chegar à Lua (ou a um queijo?) antes dos americanos, amontoando escrinhos numa torre até ao céu. Quando lhes faltava apenas um para atingir a meta, aperceberam-se de que não havia mais. Até que o cabo de polícia, “homem de muita sabedoria”, teve uma “ideia genial”: retirar-se-ia um escrinho da base, colocar-se-ia no cimo. Dito e feito, ruína (e risada) geral.
“Ficaram a seco: nem queijo, nem Lua.”
Armanda Ribeiro - Textos e Fotos
Reportagem - Jornal Público
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