Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 29 de julho de 2018

Vimioso, uma porta escancarada para a nossa natureza

Num só dia é possível passear com burros mirandeses junto ao rio, refrescar as ideias numas termas, conhecer o artesanato local, caminhar pela história de Portugal e gozar de um repasto transmontano. Aqui não é preciso escolher.
Aldeia de Algoso

Alfredo, Garbanzo e Aragão estão a postos. Ajeitam-se as albardas e os alforges coloridos, guardam-se as garrafas de água, preparam-se os caminhantes para o que aí vem: um passeio, (muito bem) acompanhado pelos três burros mirandeses, ao longo do rio Angueira, um dos cursos que atravessam Vimioso, em pleno Nordeste Transmontano. Entretanto, junto à água, uma figura aproxima-se, vinda da outra margem. Pé ante pé, de pedra em pedra, tem uma vara na mão e gestos precisos. Ocupa-se de uma minuciosa tarefa como se fosse dele, e de mais ninguém. O que faz, descobrimos à sua chegada até nós. Guarda-fiscal reformado, António Pires pastoreia por ali as suas cinco vacas — já teve mais, agora é só “para passar o tempo”. Deixou-as por momentos e, enquanto atravessa o rio, aproveita para limpar as folhas secas que se acumulam entre as pedras da passagem. “Para a corrente passar e para não cheirar mal”, explica, finda a missão, vara na mão e sorriso no ar. 
Sem saber, sumariza-nos assim a orgulhosa relação que os vimiosenses têm com a sua natureza, com o seu território, com as suas tradições. E que se revela a par e passo, passo a passo.
Carolina Martins é uma das monitoras da AEPGA que acompanha o percurso

Assim começa o percurso pedestre, que se for feito por inteiro leva o visitante pelas aldeias de São Joanico, Serapicos e Angueira, sempre com o rio por perto, ao longo de 22 quilómetros (não há que temer, o grau de dificuldade é fácil). Descobre-se o esplendor do verde do bosque, vêem-se pontes medievais e moinhos de água, cheiram-se rosas-de-lobo e medronheiros, com sorte até se distinguem lontras e guarda-rios, corços e libélulas. Não há que enganar: estamos no recém-inaugurado PINTA – Parque Ibérico de Natureza, Turismo e Aventura, um anfitrião por excelência da biodiversidade de um concelho que tem mais de 40% do território na Rede Natura 2000. E aqui Alfredo, Garbanzo e Aragão surgem como os mais charmosos e meigos mestres de cerimónia. Carolina Martins, uma das monitoras da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA) que acompanha o percurso, vai-nos dando conta da suas manhas. O primeiro, nota-se à distância, é o mais enérgico, ao contrário do último, o maior, mas também o mais pacífico. Já o Garbanzo é o mais influenciável: ou imita o Alfredo ou copia o Aragão. Hoje está sereno, já sabemos o que escolheu. “Para mim, a melhor coisa dos burros é que, apesar de estarmos diariamente com eles, apesar de estarem habituados à presença humana, a personalidade deles mantém-se bem vincada”, diz a jovem de 27 anos, preparando-se para desfiar outras características do animal. A saber: pesam em média 300 quilos, mas o ideal é que suportem até um terço do próprio peso; não gostam de água, banho é só mesmo quando tem de ser; vêem mal para baixo, tampas de saneamento ou passadeiras fazem-lhes muita confusão. E sim, como ajuíza o ditado, são teimosos: se, por exemplo, encontram uma poça de água e não conseguem distinguir o fundo, dificilmente arriscam. “Se não quiser andar, senta-se ou anda para trás”, evidencia. “A teimosia é sinal de inteligência.”

Rosa Delgado a fazer um escrinho

Escrinhos até à Lua


Passear na companhia destes animais é uma das muitas coisas que se podem fazer no parque, onde a AEPGA dirige o Centro de Actividades Lúdico-Pedagógicas do Burro de Miranda (aos três peregrinos juntam-se ainda Ipiranga e Hortelão, que tanto podem ser companheiros de caminhada, como protagonistas de sessões terapêuticas e didácticas). Mas a oferta do PINTA não se fica por aqui. Quem quiser, pode sair para o terreno para caçar, identificar (e devolver) borboletas, fazer um piquenique num lameiro com um cesto recheado de produtos regionais, vinho e até uma manta ou, quem sabe, aprender tradições. E que tal começar a fazer escrinhos?
Um escrinho

Desta feita, encontramos Rosa e Aníbal Delgado com uma pequena plateia de aprendizes de olhos pregados nas mãos dela. Daquela trabalhosa dança a dez dedos está sair aos poucos um cesto. Estamos a ver nascer um escrinho. Feitos com palha de centeio e casca de silva, estes cestos únicos, originais da aldeia de Vilar Seco, eram utilizados no passado para guardar cereais, sementes, farinha. Com o tempo, o saber foi-se perdendo, até que, há 12 anos, Aníbal candidatou-se à junta de freguesia da sua terra, determinado em não deixar a arte morrer. “Quase fiquei pela promessa”, confessa. Promoveram-se cursos, poucos quiseram aprender; ficou a sua esposa, “talvez por teimosia” dele, que assim se fez artesã há cerca de seis anos, para “não deixar perder a tradição”. É a única formadora; mais sabem fazê-los, mas não “têm vagar”, produzem “só em casa”. “Isto é só uma brincadeira, só me dá prejuízo”, diz ele, alisando vigorosamente uma silva na perna com uma navalha. Por causa da artrite reumatóide, os dedos fogem-lhe, não pode fazê-la serpentear pela palha, deixa-o para Rosa.



“Dá muito trabalho, ninguém quer aprender”, admite a sexagenária, que, por sua vez, à custa do labor, já sofreu uma tendinite no ombro. Hoje, já não se fazem tanto os verdadeiros escrinhos, mas aplica-se a mesma técnica para peças mais pequenas, como fruteiras, cestas, até máscaras e crucifixos. “Olha”, graceja Aníbal, apontando para o aprendiz João Rodrigues, “este já te tira a profissão”. E é vê-lo, a princípio incerto, depois mais confiante, a embrenhar as mãos naquele rodopio de palha e silvas. Veterinário, de 35 anos, veio a esta oficina gratuita para “matar uma curiosidade antiga”. Durante oito anos, viveu em Vilar Seco, onde chegou a experimentar fazer um escrinho; treze anos depois, viu neste encontro uma nova oportunidade para voltar a tentar.
Rosa Delgado ensina a fazer escrinhos

Agora”, auspicia, “o próximo passo é criar peças de design, fazer coisas contemporâneas a partir da tradição, acompanhar os tempos”. Não ele, que não tem tempo. Outros. Talvez assim, com outros cestos, Vilar Seco chegue finalmente ao espaço. Conta Aníbal que reza a lenda que os habitantes, conhecidos como escrinheiros, tentaram chegar à Lua (ou a um queijo?) antes dos americanos, amontoando escrinhos numa torre até ao céu. Quando lhes faltava apenas um para atingir a meta, aperceberam-se de que não havia mais. Até que o cabo de polícia, “homem de muita sabedoria”, teve uma “ideia genial”: retirar-se-ia um escrinho da base, colocar-se-ia no cimo. Dito e feito, ruína (e risada) geral.


“Ficaram a seco: nem queijo, nem Lua.”

Armanda Ribeiro - Textos e Fotos
Reportagem - Jornal Público

Sem comentários:

Enviar um comentário