quarta-feira, 22 de junho de 2022

O pão da minha meninice

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Hoje pela manhã a minha mulher disse-me que comprasse pão fresco de Carragosa, que deveria procurar no Ferreira, já que era especificamente desta procedência, aquele de que ela mais gostava pois se assemelhava muito ao que comia em casa dos pais, quando criança e aquele que mais lhe lembrava o que se fazia nos nossos verdes anos.
Tal sugestão trouxe imediatamente consigo imagens e palavras antigas de pelo menos sessenta anos que estando sepultas no fundo do meu baú das coisas mais bonitas se mostravam ávidas de uma apreciação pelo intelecto de que, tendo comido muito dele ao longo dos anos e em diversos lugares do mundo, continua com sabor desta iguaria nas papilas gustativas, ainda hoje! Iguaria porque o pão da minha criação era, de facto, coisa maravilhosa. Amassado à mão, nas masseiras da Padaria do Necho, sita na rua dos Fornos, e cozinho em forno de lenha aquecido com estevas e urzes, previamente secas para facilitar a sua combustão e deixarem dentro deste odor inconfundível que apenas é possível, cheirar-se nestas terras raianas e perdidas do nordeste transmontano. Fixar tais memórias e mantê-las incorruptas, prontas a mostrarem-se quando a ocasião de novo se apresenta, é um exercício só possível por ação dos vários elementos ao harmonizarem-se entre si e causam o objeto sagrado que é o nosso pão de cada dia, alimento que Deus consagrou e elegeu para representar o ato místico da Eucaristia que, ao ser instituída, nos permite, através do pão, acedermos ao Redentor e, por tempo indeterminado, sermos puros como ELE ordena.
Toda esta introdução tem a ver com a prática que era tida em grande conta pelos nossos pais e avós que tinham pelo pão um respeito comparável ao que de mais perfeito o homem havia, com suas mãos pecadoras, produzido. Tão perfeito que matava a fome, consolava o espírito e era elevado ao altar para que Deus, consagrando-o, servisse de alimento à nossa Alma. Assim, aprendi eu a respeitar este alimento que, na minha criação, recebia de nós o respeito devido às coisas sagradas. Minha mãe não consentia sequer que o pão fosse colocado com o lar, parte inferior, voltado para cima. Exigia que a sua colocação fosse aquela que o padeiro lhe dava quando o metia ao forno para ser cozido. Sempre que algum pedaço caía ao chão e se recuperava para ser comido, deveria beijar-se dizendo-se uma pequena oração, porque só assim Deus o consideraria puro para ser consumido, limpo e sacro, como ELE havia ordenado aos israelitas!
Era, portanto, o pão o alimento que eu e o meu irmão Marcelo estávamos encarregados de duas vezes por semana irmos buscar à Padaria do Necho e, dentro de um saco feito ao tear como se fora um alforge, trazermos para nossa casa na Caleja do Forte. Era naquele tempo empregada na padaria, servindo ao balcão, uma moça chamada Restituta que, sendo de família amiga da minha e que simpática e alegre como era, fazia questão de no meu saco pôr menos um pão do que naquele do meu irmão Marcelo que, sendo mais velho três anos, era mais possante e carregava cinco, cabendo-me a mim carregar quatro. Quando a carga devidamente aconchegada estava pronta, era da praxe que a menina Restituta nos instruísse de qual a melhor forma de, às costas, chegarmos com ele intacto a casa! Porém nós já tínhamos o nosso plano delineado antecipadamente e que era de molde a sermos devidamente recompensados da tarefa de que nos haviam incumbido e que nós executávamos sem refilar. Partidos da venda do pão, seguíamos até metade da Rua dos Gatos. Aí as casas tinham para acesso umas escadas exteriores de pedra onde nós pousávamos os sacos e logo de seguida abríamo-los e procurávamos aqueles pães que tinham como que uma excrescência, a que chamávamos têtos e que eram saborosíssimos. Acontecia dentro do forno um processo que, não sendo uniforme, ocasionava, devido às diferentes graduações de calor no teto do forno, crestar a parte superior do pão antes que o processo de levedação da massa estivesse completo, fazendo-a abrir uma fissura lateral por onde se escapava uma fração desta que se derramava e se tornava como um apêndice que, depois de cozido e desenformado, se exibia num tom dourado e uma crestação agradável à vista e de um sabor esquisito e perfumado. Acabada a devassa e depois de comido e apreciado o petisco, fechávamos os sacos e reatávamos a jornada até à Caleja do Forte. 
Em casa a minha mãe reparava que tínhamos mutilado o pão e que o seu aspeto havia sofrido com isso, mas normalmente dizia resignada: “ Já tendes o serviço feito, para vós era, mas, como não tendes paciência, fazeis essa coisa ao pão que o desfeia, com essa vossa mania de comerdes os têtos quentes. 
No tempo em que o pão era sagrado e veneração por este alimento era comum a ricos e pobres, estava guardado para mim e para o meu irmão Marcelo o pedaço mais saboroso que a minha mãe, não sem que o lamentasse verbalmente, deixava que fizéssemos recorrentemente por saber que ambos adorávamos tal petisco e ainda mais o  ritual que invariavelmente acontecia nas escadinhas de uma casa da Rua dos Gatos onde parávamos para cumprirmos o Ato Solene da Mutilação dos Pães que a menina Restituta havia previamente separado do grosso da fornada sabendo que eu e o meu irmão nos deliciaríamos ao comê-los. Há hoje em Bragança, a possibilidade de se adquirir pão de várias padarias que, em várias aldeias do concelho e até fora dele, Argoselo por exemplo, fabricam por processos modernos e que mantém a forma e o sabor tradicional. Vejo, com prazer, as pessoas daqui e de fora apreciarem este pão que, sendo quase genuíno, cumpre com a legislação recente e que faz com que a higiene na produção e manuseamento seja irrepreensível. 
É justo que se diga que os padeiros brigantinos souberam conciliar o tradicional com os padrões modernos, mas, no meu imaginário, continuam presentes os velhos fornos dispersos pela cidade, com os seus padeiros que trabalhando de noite e em condições de iluminação e higiene algo deficientes, produziram pão para a cidade feito com qualidade e sentido de responsabilidade. Recordo homens e mulheres que foram heróis e que a própria profissão marcou física e mentalmente pela dureza da missão que cumpriram e pela qual os devemos memorar. Padeiros como o Vila Real e o Salvé-Rainha, no Lopes & Sá Morais, todos os que trabalharam no Afonso & Lopes Cia, mulheres como a Senhora Catarina, nos Batoques, a célebre Camila que tinha barraca no Mercado e era mulher do Mitréculo, a minha grande amiga Senhora Alice do Tombeirinho, a Cerdeira, também o Manco da Guerra Junqueiro, de quem esqueci o nome próprio e a quem peço que me perdoe por isso, e os homens e mulheres que faziam o pão no Necho de onde comi tanto. 
Os padeiros da Rucha que faziam os melhores escachados e as padeiras da Boavista, do forno do Valente, da tia Amélia Militar que era vendedeira e minha grande amiga, mãe do Cruz, são apenas alguns dos muitos que fizeram o pão nosso de cada dia e a quem estarei para sempre agradecido. Não esquecerei a menina Restituta pelo amor com que me tratou a mim e ao meu irmão Marcelo. Gente do povo a que eu pertenço e de quem recebi a educação e a maneira chã de me relacionar, devendo também uma homenagem à tia Sofia dos Canelões e à sua filha, Senhora Fernanda, que fazia os melhores folares da Páscoa no forno da Boavista. Também a tia Filomena do Senhor Martins que fazia folares e doces que me consolaram. Outros há que não lembro agora, mas que merecem também o nosso voto de gratidão.
Lembro à gente que, nos serviços da Câmara Municipal, tem por missão promover a cidade e região que, para além e antes dos butelos e das chouriças mais as casulas e outras coisas, há, na região bragançana, o pão que invariavelmente chega à mesa em primeiro lugar e que, sendo bom e com direito a superlativo, deveria ser considerado como algo a promover pelos que amam Bragança e se reveem nos seus produtos de excelência. Comeremos, assim, o pão da Vida e não o que o Diabo amassou. Acreditem!




Bragança, 16/07/2018
A.O. dos Santos 
(Bombadas)


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