Estamos na última semana de Agosto. Não se fala de outra coisa em Grijó: a festa.
Os mordomos, muito compenetrados, inchados da dignidade de terem sido escolhidos democraticamente para cargo de tanta responsabilidade, andaram nos últimos dias a carpinteirar a quermesse e o recinto de venda dos bilhetes, a aprumar postes embandeirados e a engalanar de festões as ruas principais.
As mulheres, cada qual em sua casa, embrenharam-se num labirinto de tarefas tão dispares e exigentes que me deixa estarrecido só de pensar em como podem acudir a tanto. Ele são os folares, ele são as carnes, ele são as limpezas domésticas, ele são até as remoções de esterco e estrume que durante todo o ano se acumularam nas ruas por onde a procissão há-de passar — eu sei lá o que mais é! —, tudo isto a par da rigorosa observação dos diversos momentos religiosos que a festa comporta. E tudo providenciam, a tudo acodem com gestos antigos e medidos e uma eficiência de que homem algum jamais seria capaz.
Admiráveis mulheres trasmontanas!
Ao ver a azáfama de uns e outros, fico-me a cismar em como esta tradição da festa consegue ainda subsistir num tempo que vai tão avesso a tradições. Sim, eu sei que a festa teve uma função social importante em tempos idos, quando a roda do ano era um chorrilho ininterrupto de trabalhos e tribulações, e as pessoas precisavam de um momento de escape anual como de pão para a boca. Era como que uma transgressão colectiva, uma das poucas que o povo reclamava e lhe eram consentidas — mesmo assim, severamente pautada pelas cerimónias religiosas. Mas os horizontes vivenciais foram-se alterando, na peugada do desenvolvimento científico e tecnológico. A vida melhorou algum tanto. E a televisão — o grande agente transformador — invadiu o quotidiano das comunidades rurais, trazendo-lhes novas propostas de diversão que logicamente deveriam ter tornado obsoletas as ingénuas alegrias da festa anual.
Deveriam. Mas a verdade é que não tornaram. Pelo menos de todo. É que uma argamassa muito forte e resistente à corrosão do tempo continua a dar consistência e sentido à festa: a sua componente religiosa.
Na verdade, é em função desta que toda a restante matéria festiva se organiza. Basta dizer que em Grijó a festa abre, sábado à tarde, e encerra, segunda de manhã, com a procissão do Senhor do Calvário. Mais precisamente: o Senhor do Calvário, que passa o ano na sua capelinha erigida num morro sobranceiro à aldeia, é trazido em procissão para a igreja matriz, no sábado à tarde, e restituído à sua morada habitual, na segunda de manhã. São estes dois momentos que balizam o universo das manifestações profanas.
De resto, as manifestações profanas não são muitas. Digamos que a mais importante é talvez o almoço de domingo, que tem lugar por essas três horas da tarde, quando os estômagos inconformados já roncam fragorosamente reclamando a sua quota parte das iguarias da cozinha. Mas quê! Uma vez mais a primazia do religioso se impõe: a missa, que já começa tarde, é solene, com pregação geralmente prolixa, e rematada com uma procissão, e antes de estas cerimónias terminarem ninguém se atreveria a sentar-se à mesa. O que, por um lado, até é vantajoso: o apetite exacerba-se e os dentes cravam-se depois com mais prazer e raiva nas carnes várias que em todos os lares, mesmo os mais modestos, o forno assou.
Há depois, na praça pública, uma ou outra tenda: a doceira, a barraca de tiro, o vendedor de melões e, quando calha, algum bufarinheiro de calçado manhoso ou confecção barata. De toda esta chatinaria, retenho na memória de tempos idos a doceira, a quem eu comprava por quinze tostões não as cavacas nem as fatias de pão-de-ló que também vendia, mas o conteúdo dumas garrafinhas que vinha a ser uma beberagem à base de aguardente e açúcar e eu sorvia sôfrego por um tubinho de lata dobrado em ângulo obtuso, que servia sucessivamente a todos os clientes (só havia um tubo), sem melindres de higiene. Onde isso vai...
Mas voltemos à festa de Grijó. Há a quermesse, onde está exposta toda a casta de objectos escalavrados e sem préstimo, que foram angariados pelos mordomos de porta em porta, até em aldeias vizinhas. Para a quermesse deste ano, eu próprio contribuí com uma horrenda pomba de barro com olhos do feitio dos da gente, pálpebras e tudo, que veio parar a minha casa já não sei bem como nem porquê. Os objectos recolhidos são agora sorteados através de bilhetes de rifa, que se compram defronte da quermesse, enroladinhos à mão como cigarros e depois dobrados ao meio, para que ninguém possa cocar, sem os desembrulhar primeiro, se têm prémio ou não. Esta quermesse é a tentação dos raparigos, que nela consomem as magras moedas que nas últimas semanas andaram a juntar para o dia da festa.
E há a animação sonora: música e foguetório. No tocante a música é que houve maior evolução em relação aos cânones ancestrais. Quando eu era garoto, nas festas de aldeia havia a banda e mais nada. Vinha de longe, precedida de grande fama: Revelhe, Pevidém, São Mamede de Ribatua, Mateus.... Entrava na povoação, em formatura impecável, com o mestre muito compenetrado à frente, a tocar um passe-calle, seguida do rapazio excitado. À noite, as pessoas postavam-se em redor do coreto, escutando admirativamente a execução das partituras, e não era invulgar ouvir alguém mais entusiasta soltar um comentário irreprimível: ‘Carválhitchas! Peis a música toca bem duma bêze!’ Ou seja: ‘Caramba! A banda toca mesmo bem!’
A banda acompanhava as solenidades religiosas, balanceando-se a compasso na procissão, e à noite, no coreto, estreloiçava intrepidamente — arroz p’rò pote, arroz p’rò pote — as suas rapsódias e modinhas.
Hoje porém o povo não se contenta com tão pouco. Vem a banda, sim senhor, e toca lá o que tem a tocar à hora que lhe é marcada. Mas, mal se cala, irrompe a voz potente dos altifalantes, debitando música folclórica e pseudofolclórica, alguma desta simplesmente detestável e não raro obscena: Quim Barreiros e uma legião de imitadores a cantar ordinarices que o povo toma por música popular e dança entusiasticamente. E — progresso dos progressos — chegada a hora, um conjunto de nome bombástico, vindo de alguma das vilas circunvizinhas, salta para cima do atrelado dum tractor e atroa os ares com o mais desalmado rock — exigência da juventude que, envolvida na poeira da praça, dança em espasmos como vê dançar na televisão. Contaminação inevitável, pois Grijó não quer ficar de fora da aldeia global a que o mundo, segundo o sábio canadiano, está reduzido.
Talvez seja esta a fenda, cismo, por onde se hão-de insinuar os germes da destruição da festa. Talvez. Mas por ora a festa vende saúde. É certo que estouram menos foguetes do que há vinte anos, mas isso procede da crise económica generalizada, que não de ter caído em desgraça o fogo de artifício. E enquanto o povo, incluindo a mocidade, mantiver, como mantém, acesa a sua devoção ao Senhor do Calvário, estou que não há Quim Barreiros nem conjunto rock que atirem de pantanas com a festa de Grijó.
Tudo isso é muito bonito. Mas, por muita simpatia e respeito que tenhamos pelas manifestações da cultura popular — e a festa é uma delas —, não temos vocação de martírio em grau suficientemente elevado para nos dispormos a passar a noite da festa em Grijó. Era um sacrifício demasiado penoso. É que a nossa casa, por nosso mal, fica junto da igreja, cujo largo fronteiro é o centro nevrálgico de todas as manifestações. Passarmos ali a noite de sábado para domingo equivale a ficarmos submergidos num mar de decibéis agressivos e não pregarmos olho durante toda a santa noite.
Mas, mais ainda do que o não poder dormir, incomoda-nos a nauseante brejeirice da música do altifalante, revezando com o mau gosto da música do conjunto, as duas coisas no máximo volume, berrando o mais que podem e fazendo com que um barulho impiedoso nos invada a casa, não deixando recanto nem esconso onde se esteja a salvo. Ah, que saudades dos tempos em que, em matéria de música, bastava a banda no coreto, que, por muito desafinada que fosse, sempre debitava meia dúzia de notas de arte. E dos tempos em que, em matéria de ruído, bastava pela meia-noite o foguetório a estralejar durante um quarto de hora. Podia-se dormir, nesses tempos abençoados. Mas mesmo em Grijó os jovens impõem a sua lei e, com o seu engodo pela música aos berros — que ou me engano muito ou há-de fazer de cada um deles um surdo precoce—, transforma a noite do arraial num tormento insuportável para ouvidos e mentes sensíveis. De forma que, dois ou três dias antes da festa, metemos as malas no carro e, ala!, batemos em profiláctica retirada para Vila Real — onde de resto também temos alguns vizinhos barulhentos, mas que, comparados com os agressivos extremos da festa de Grijó, nos parecem agora meninos de coro a cantar pianíssimo uma canção de embalar.
Não damos, contudo, ao demo os dias passados na aldeia. Pelo contrário, guardamo-los gratamente na memória. Porque foram dias de paz, de comunhão com a ruralidade que pulsa ainda no nosso sangue, de proximidade da natureza. Para o ano lá estaremos.
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Os mordomos, muito compenetrados, inchados da dignidade de terem sido escolhidos democraticamente para cargo de tanta responsabilidade, andaram nos últimos dias a carpinteirar a quermesse e o recinto de venda dos bilhetes, a aprumar postes embandeirados e a engalanar de festões as ruas principais.
As mulheres, cada qual em sua casa, embrenharam-se num labirinto de tarefas tão dispares e exigentes que me deixa estarrecido só de pensar em como podem acudir a tanto. Ele são os folares, ele são as carnes, ele são as limpezas domésticas, ele são até as remoções de esterco e estrume que durante todo o ano se acumularam nas ruas por onde a procissão há-de passar — eu sei lá o que mais é! —, tudo isto a par da rigorosa observação dos diversos momentos religiosos que a festa comporta. E tudo providenciam, a tudo acodem com gestos antigos e medidos e uma eficiência de que homem algum jamais seria capaz.
Admiráveis mulheres trasmontanas!
Ao ver a azáfama de uns e outros, fico-me a cismar em como esta tradição da festa consegue ainda subsistir num tempo que vai tão avesso a tradições. Sim, eu sei que a festa teve uma função social importante em tempos idos, quando a roda do ano era um chorrilho ininterrupto de trabalhos e tribulações, e as pessoas precisavam de um momento de escape anual como de pão para a boca. Era como que uma transgressão colectiva, uma das poucas que o povo reclamava e lhe eram consentidas — mesmo assim, severamente pautada pelas cerimónias religiosas. Mas os horizontes vivenciais foram-se alterando, na peugada do desenvolvimento científico e tecnológico. A vida melhorou algum tanto. E a televisão — o grande agente transformador — invadiu o quotidiano das comunidades rurais, trazendo-lhes novas propostas de diversão que logicamente deveriam ter tornado obsoletas as ingénuas alegrias da festa anual.
Deveriam. Mas a verdade é que não tornaram. Pelo menos de todo. É que uma argamassa muito forte e resistente à corrosão do tempo continua a dar consistência e sentido à festa: a sua componente religiosa.
Na verdade, é em função desta que toda a restante matéria festiva se organiza. Basta dizer que em Grijó a festa abre, sábado à tarde, e encerra, segunda de manhã, com a procissão do Senhor do Calvário. Mais precisamente: o Senhor do Calvário, que passa o ano na sua capelinha erigida num morro sobranceiro à aldeia, é trazido em procissão para a igreja matriz, no sábado à tarde, e restituído à sua morada habitual, na segunda de manhã. São estes dois momentos que balizam o universo das manifestações profanas.
De resto, as manifestações profanas não são muitas. Digamos que a mais importante é talvez o almoço de domingo, que tem lugar por essas três horas da tarde, quando os estômagos inconformados já roncam fragorosamente reclamando a sua quota parte das iguarias da cozinha. Mas quê! Uma vez mais a primazia do religioso se impõe: a missa, que já começa tarde, é solene, com pregação geralmente prolixa, e rematada com uma procissão, e antes de estas cerimónias terminarem ninguém se atreveria a sentar-se à mesa. O que, por um lado, até é vantajoso: o apetite exacerba-se e os dentes cravam-se depois com mais prazer e raiva nas carnes várias que em todos os lares, mesmo os mais modestos, o forno assou.
Há depois, na praça pública, uma ou outra tenda: a doceira, a barraca de tiro, o vendedor de melões e, quando calha, algum bufarinheiro de calçado manhoso ou confecção barata. De toda esta chatinaria, retenho na memória de tempos idos a doceira, a quem eu comprava por quinze tostões não as cavacas nem as fatias de pão-de-ló que também vendia, mas o conteúdo dumas garrafinhas que vinha a ser uma beberagem à base de aguardente e açúcar e eu sorvia sôfrego por um tubinho de lata dobrado em ângulo obtuso, que servia sucessivamente a todos os clientes (só havia um tubo), sem melindres de higiene. Onde isso vai...
Mas voltemos à festa de Grijó. Há a quermesse, onde está exposta toda a casta de objectos escalavrados e sem préstimo, que foram angariados pelos mordomos de porta em porta, até em aldeias vizinhas. Para a quermesse deste ano, eu próprio contribuí com uma horrenda pomba de barro com olhos do feitio dos da gente, pálpebras e tudo, que veio parar a minha casa já não sei bem como nem porquê. Os objectos recolhidos são agora sorteados através de bilhetes de rifa, que se compram defronte da quermesse, enroladinhos à mão como cigarros e depois dobrados ao meio, para que ninguém possa cocar, sem os desembrulhar primeiro, se têm prémio ou não. Esta quermesse é a tentação dos raparigos, que nela consomem as magras moedas que nas últimas semanas andaram a juntar para o dia da festa.
E há a animação sonora: música e foguetório. No tocante a música é que houve maior evolução em relação aos cânones ancestrais. Quando eu era garoto, nas festas de aldeia havia a banda e mais nada. Vinha de longe, precedida de grande fama: Revelhe, Pevidém, São Mamede de Ribatua, Mateus.... Entrava na povoação, em formatura impecável, com o mestre muito compenetrado à frente, a tocar um passe-calle, seguida do rapazio excitado. À noite, as pessoas postavam-se em redor do coreto, escutando admirativamente a execução das partituras, e não era invulgar ouvir alguém mais entusiasta soltar um comentário irreprimível: ‘Carválhitchas! Peis a música toca bem duma bêze!’ Ou seja: ‘Caramba! A banda toca mesmo bem!’
A banda acompanhava as solenidades religiosas, balanceando-se a compasso na procissão, e à noite, no coreto, estreloiçava intrepidamente — arroz p’rò pote, arroz p’rò pote — as suas rapsódias e modinhas.
Hoje porém o povo não se contenta com tão pouco. Vem a banda, sim senhor, e toca lá o que tem a tocar à hora que lhe é marcada. Mas, mal se cala, irrompe a voz potente dos altifalantes, debitando música folclórica e pseudofolclórica, alguma desta simplesmente detestável e não raro obscena: Quim Barreiros e uma legião de imitadores a cantar ordinarices que o povo toma por música popular e dança entusiasticamente. E — progresso dos progressos — chegada a hora, um conjunto de nome bombástico, vindo de alguma das vilas circunvizinhas, salta para cima do atrelado dum tractor e atroa os ares com o mais desalmado rock — exigência da juventude que, envolvida na poeira da praça, dança em espasmos como vê dançar na televisão. Contaminação inevitável, pois Grijó não quer ficar de fora da aldeia global a que o mundo, segundo o sábio canadiano, está reduzido.
Talvez seja esta a fenda, cismo, por onde se hão-de insinuar os germes da destruição da festa. Talvez. Mas por ora a festa vende saúde. É certo que estouram menos foguetes do que há vinte anos, mas isso procede da crise económica generalizada, que não de ter caído em desgraça o fogo de artifício. E enquanto o povo, incluindo a mocidade, mantiver, como mantém, acesa a sua devoção ao Senhor do Calvário, estou que não há Quim Barreiros nem conjunto rock que atirem de pantanas com a festa de Grijó.
Tudo isso é muito bonito. Mas, por muita simpatia e respeito que tenhamos pelas manifestações da cultura popular — e a festa é uma delas —, não temos vocação de martírio em grau suficientemente elevado para nos dispormos a passar a noite da festa em Grijó. Era um sacrifício demasiado penoso. É que a nossa casa, por nosso mal, fica junto da igreja, cujo largo fronteiro é o centro nevrálgico de todas as manifestações. Passarmos ali a noite de sábado para domingo equivale a ficarmos submergidos num mar de decibéis agressivos e não pregarmos olho durante toda a santa noite.
Mas, mais ainda do que o não poder dormir, incomoda-nos a nauseante brejeirice da música do altifalante, revezando com o mau gosto da música do conjunto, as duas coisas no máximo volume, berrando o mais que podem e fazendo com que um barulho impiedoso nos invada a casa, não deixando recanto nem esconso onde se esteja a salvo. Ah, que saudades dos tempos em que, em matéria de música, bastava a banda no coreto, que, por muito desafinada que fosse, sempre debitava meia dúzia de notas de arte. E dos tempos em que, em matéria de ruído, bastava pela meia-noite o foguetório a estralejar durante um quarto de hora. Podia-se dormir, nesses tempos abençoados. Mas mesmo em Grijó os jovens impõem a sua lei e, com o seu engodo pela música aos berros — que ou me engano muito ou há-de fazer de cada um deles um surdo precoce—, transforma a noite do arraial num tormento insuportável para ouvidos e mentes sensíveis. De forma que, dois ou três dias antes da festa, metemos as malas no carro e, ala!, batemos em profiláctica retirada para Vila Real — onde de resto também temos alguns vizinhos barulhentos, mas que, comparados com os agressivos extremos da festa de Grijó, nos parecem agora meninos de coro a cantar pianíssimo uma canção de embalar.
Não damos, contudo, ao demo os dias passados na aldeia. Pelo contrário, guardamo-los gratamente na memória. Porque foram dias de paz, de comunhão com a ruralidade que pulsa ainda no nosso sangue, de proximidade da natureza. Para o ano lá estaremos.
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Uf! Chegámos ao fim. Posso descansar agora um bocadinho?
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