Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Envolto na capa e o rosto oculto pela aba do chapéu, Umbelino saltitou de sombra em sombra, evitando ser visto pelos funcionários que acendiam os lampiões da rua. Colou-se à parede do adro da igreja, correu para o entreaberto portão de metal e penetrou nas sombras das árvores. Ofegante, aproveitou aquele momento para se acalmar e trazer os batimentos cardíacos a um ritmo aceitável.
Não gostava nada daquilo que lhe pediram para fazer, mas a verdade é que tiraram as sortes e ele perdeu… agora não podia dar parte de fraco. Não que tivesse qualquer escrúpulo, simplesmente… há coisas que deviam ser deixadas sossegadas.
As vozes longínquas dos acendedores de candeeiros ecoavam na rua, indistintas, mas revelando que ainda se encontravam por perto. O embuçado manteve-se quieto e calado nas sombras. Um gato preto passou e eriçou os pelos do dorso, surpreendido e assustado com a silenciosa presença, antes de fugir a bufar em grandes saltos.
Finalmente as ruas estavam em silêncio e o homem ergueu-se e caminhou lentamente até ao portão do adro e espreitou a praça vazia. Ao fundo, uma caleche passou apressada, os cascos do cavalo batendo forte na calçada. O silêncio regressou em seguida.
Ele voltou a ocultar o rosto embrulhando-se na capa e baixou a aba do chapéu. A sua respiração saía sob a forma de vapor da estreita abertura que deixara para os olhos. Avançou, com passos silenciosos, pela viela estreita que subia paralela ao adro da igreja. Não havia ninguém nas ruas naquela noite de Novembro, o frio fazia com que ninguém quisesse sair de casa, mesmo que ela tivesse poucas condições. O calor da lareira, haveria de os aquecer um pouco durante a ceia e depois recolher-se-iam para “debaixo das mantas”. Também Umbelino preferia estar na taberna a beber aguardente, em vez de estar ali, ao frio, quase a fazer algo que não queria. Como que por se recordar, tirou um pequeno cantil de bolso e sorveu dois golos que queimaram forte na garganta.
***
Deveria ter desconfiado, logo que o criado bem vestido o abordou na taberna da viúva, que não lhe trazia “recado” fácil. Foi a qualidade das roupas do enviado, que despertou a cobiça de Adalberto e Silvério, que com ele partilhavam as “aventuras” com que iam conseguindo “aquilo com que se compram as sardinhas”. Assim que o estranho contou o que se pretendia, Umbelino preparava-se para recusar, mas os outros dois protestaram e quiseram saber qual a paga. O “cliente” estava disposto a pagar dez mil reis! Todos ficaram de boca aberta. Vendo que captara a nossa atenção, o criado explicou que o seu patrão pretendia reaver um objeto de grande valor sentimental que fora sepultado com a sua esposa e para isso estava disposto a desembolsar dez mil reis, se lhe entregassem o que pretende.
“Mas afinal, se é a tumba da esposa, porque não a manda exumar e recolher o que quer?” Perguntou Silvério desconfiado.
“A falecida senhora minha patroa, era de origem abastada já antes do casamento e possuía muitos bens próprios; houve coisas que a família exigiu que fossem sepultadas com ela, de acordo com o escrito no testamento. O meu patrão não podia desonrar-se e recusar.” Respondeu o criado simplesmente.
“Mas de que se trata afinal? Que é que o seu patrão quer assim tanto, para pagar uma fortuna dessas? ”Apesar da ideia do cemitério não lhe ser amigável, a paga fazia Umbelino reconsiderar.
“Um simples anel! O anel que o meu patrão lhe ofereceu de noivado e que pretende manter de sua propriedade, como recordação da amada esposa.” Concluiu o criado sorridente. “Apenas têm que trazer algo que cabe no bolso do colete e receber dez mil reis por isso.”
Claro que concordaram em fazer o serviço. Não era uma quantia que se visse todos os dias. Além de que, era muito mais fácil roubar um morto, que um vivo que grita, esperneia e às vezes traz uma pistola ou uma faca. Não era contudo trabalho para ser feito por mais do que um; três homens a vaguear na rua à noite, rapidamente atrairiam as atenções e tudo poderia correr mal. Acordaram em tirar às sortes com os dados… e Umbelino perdeu. Esteve quase a acovardar-se e dar o dito por não dito, mas não se atreveu a ser alvo da chacota dos companheiros.
***
Chegou finalmente ao portão engradado do cemitério e fez-se um só com os contornos do granito, numa manobra que mostrava experiência, enquanto se certificava que a rua continuava vazia. Mais dois golos, serviram para lhe dar alguma coragem, antes de escalar ágilmente o enorme portão e saltar para o empedrado do lado de dentro.
A visão da “floresta de mármore”, fracamente iluminada pela luz bruxuleante das velas e pequenas luminárias, não contribuía em nada para que se sentisse mais calmo. O coração batia apressadamente e sentia as costas húmidas e geladas. Percorreu o cemitério ao longo dos mausoléus, escondendo-se do fraco brilho da lua, enquanto contava mentalmente os sepulcros. As instruções eram claras: era o mausoléu da família Vasques de Sá, o décimo sexto após a porta lateral e terceiro antes da interceção com a nova ala do campo-santo. A chave estava pendurada do lado de dentro amarrada a um cordel e o caixão era o segundo à direita.
Chegou ao sepulcro correto. Inspirou fundo, e bebeu mais um pouco, antes de atirar o braço através da grade do portão e tatear em busca da chave. Sentia todos os pelos da nuca eriçarem-se. O ruído de passos sobressaltou-o e encolheu-se no espaço escuro entre os dois mausoléus. O brilho metálico de uma faca refulgiu na sua mão.
Através do espaço entre duas lápides, Umbelino viu o guarda do cemitério, vindo do acesso à ala nova, empunhando uma candeia. Passava e espreitava para dentro de cada um dos sepulcros. Preparou o punhal para uma estocada que o silenciasse rapidamente e aguardou. Não foi necessária a violência, pois o vigia passou rapidamente e a espreitar apenas de relance. Nunca saberá como esteve perto de perder a vida naquela ronda.
Assim que os passos deixaram de se ouvir, retornou à sua busca e logrou finalmente apanhar a chave. Foi quando tentou abrir a porta, que verificou que o cordel era demasiado curto para chegar à fechadura e demasiado resistente para que o conseguisse rebentar. Resmungou baixo a sua frustração e preparou-se para o cortar, mas depois pensou que deveria deixar tudo como estava e seria melhor desamarra-lo e atá-lo novamente. Com pouca luz e mãos enregeladas, teve muitas dificuldades em perceber como estava o nó e passou imenso tempo a insultar o fio, a chave, o cemitério, o seu patrão e ele próprio por se deixar levar nesta aventura. Furioso, num impulso irrefletido, sacou da faca e cortou brutalmente o cordel… a chave tilintou no interior escuro da cripta.
Se pudesse gritar aos céus as suas frustrações, tudo seria mais fácil, como não podia, viu-se na obrigação de dar saltos de fúria, enquanto praguejava sem soltar um som, executando uma dança grotesca.
Atirou-se sobre o portão e apalpou inutilmente o chão tentando ouvir ou sentir o objeto. Repetiu a operação com a ponta da faca, novamente sem sucesso. O desespero estava quase a leva-lo às lágrimas; sentou-se no chão, de costas para o mausoléu, com a cabeça entre os joelhos.
Recomposto, repetiu as tentativas para encontrar a chave, no interior completamente escuro. Soprou a fúria e chutou a impotência contra o portão. Com um gemido de ferro enferrujado, este abriu-se ligeiramente. “O maldito portão nunca esteve fechado!” Gritou silenciosamente enquanto amarrotava o chapéu na cabeça, furioso com a sua própria estupidez.
Empurrou a grade com receio e deu os primeiros passos no escuro. Algo tilintou em contacto com a bota e ele, num dos seus acessos de fúria, chutou a chave. Vários objetos metálicos tilintaram e alguns caíram em ruídos nada bem-vindos a quem não quer ser visto nem ouvido. Encolheu-se com os dentes cerrados, surpreendido com a sua própria estupidez. Espreitou para o exterior a ver se o guarda por um acaso regressava.
Sentindo-se mais seguro, olhou para as silhuetas difusas dos caixões nas prateleiras à sua direita. Estavam os três limpos, mas não havia duvidas que o do meio brilhava com madeira nova. Engoliu em seco, benzeu-se e puxou o ataúde para fora, com esforço. Deixou que a cabeceira continuasse em cima da prateleira e pousou a parte dos pés no chão. Com a faca, trabalhou a fraca fechadura e abriu-a, dedicando-se depois a cortar o chumbo que o lacrava. Um cheiro intenso a morte invadiu o compartimento quase fazendo-o vomitar.
Levantou a tampa respeitosamente e contemplou na penumbra a velha senhora Vasques de Sá. Quase não se conseguia distinguir os pormenores, mas percebia-se que estava cuidada e não muito envelhecida. Não fosse o cheiro e poderia dizer-se que dormia. Pegou no lenço das mãos e tapou o nariz. Pensando melhor, tirou o pequeno cantil do bolso e engoliu mais dois golos, depois humedeceu o lenço e tornou a tapar o nariz com ele… “Ah, muito melhor!”.
Renovou a benzedura e soltou um pesado suspiro. Afastando a cara o mais que podia, apalpou as mãos da falecida até identificar, entre os diversos anéis que lhe adornavam os dedos, aquele com a pedra quadrada que era o seu objetivo. Dada a proximidade do rosto do cadáver, conseguiu também distinguir o brilho do ouro, num grosso cordão, em volta do pescoço. Puxou o anel por várias vezes, parecia que a morta não queria ver-se despojada da jóia, mas por fim acabou por sair. Mirou o objeto à luz difusa que se escoava para o compartimento antes de o meter no bolso. Observou novamente a mulher… “Afinal, ela já não precisa de nada do que tem.” pensou. Se bem o pensou, melhor o fez e ignorando o cheiro, colocou as mãos atrás do pescoço da morta para soltar o cordão. Nesse preciso momento, o ataúde escorregou para fora do seu apoio e caiu ruidosamente no chão de mármore, arrastando Umbelino para cima do cadáver, boca com boca, num involuntário ato de necrofilia. Horrorizado com o inusitado ósculo, ele gritou enlouquecido e tentou sair do ataúde, de onde não se conseguia soltar. Durante o que lhe pareceu uma eternidade, lutou para libertar o braço, bloqueado atrás do pescoço da mulher, enquanto gritava por perdão. Atirou o peso do seu corpo para fora e arrastou o cadáver e o caixão, ficando desta vez por baixo do conjunto. Os uivos desesperados que soltava, seriam capazes de gelar o sangue nas veias de qualquer um que se abeirasse do cemitério naquele momento. Quando conseguiu soltar-se e sair debaixo da “armadilha”, ergueu-se de um salto para sentir o toque diáfano do manto de um fantasma pousar-lhe na cabeça. Nova sequência de gritos enquanto tentava libertar-se do ser sobrenatural em que se enroscava cada vez mais. Gritou, gritou e gritou, até que uma luz trémula iluminou a cripta. Gradualmente, os gritos foram abrandando e transformaram-se num choro manso e soluçante.
O guarda do cemitério iluminou o mausoléu com a sua lanterna. Era o caos total: um caixão tombado, candelabros e outras peças de prata espalhados por todo o chão. Mesmo no meio, um homem de rosto cinzento, com o cabelo completamente branco e os olhos raiados de sangue, estava atabalhoadamente enrolado no tule das cortinas. Chorava e estendia a mão numa súplica muda.
Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.
Sem comentários:
Enviar um comentário