quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Na cidade de Bragança

Passei por Bragança no início da década de 50 do século passado; mas só tive a oportunidade de conhecê-la bem, na década imediatamente posterior.
No entanto, daquela primeira década, o fascínio da cidade ficou-me na memória, como uma fotografia impressa e indelével que, de vez em quando, me aparece em frente dos olhos – proibidos de não resistirem a um instantâneo e saudoso lacrimejar.
A minha primeira viagem a Bragança foi feita de comboio – um comboio que fumegava, ofegava, transmitia a cadência das rodas sobre os carris, não temia a escuridão dos túneis nem as arribas do Tua, passava pontes, abrandava nas subidas, e se fazia ouvir através das encostas, planaltos e quebradas, com um persuasivo, forte, dolente e prolongado assobio, para anunciar a sua chegada, ou para avisar algum incauto que, de longe, avistava, na linha.
Era um comboio de bitola estreita, Consequentemente, as carruagens eram estreitas, com bancos de madeira, e balançavam, na corrida. Quando, no impiedoso verão, abríamos as janelas para tentarmos refrescar-nos, ficávamos expostos às fagulhas que vinham com o fumo da fornalha da locomotiva. Ao contrário, como não havia aquecimento, eram zelosamente fechadas, no inverno.
Nessa altura, assistia-se à parada do Batalhão de Caçadores, no Castelo. A Coxa, Vale de Álvaro, e outras zonas agora urbanizadas ficavam longe; não existia o Bairro da Estacada, Rubacar, do Vale Churido, de Artur Mirandela, dos Formarigos, da Previdência, e outros.
Era o tempo do Liceu Nacional, da Escola Industrial, do Colégio da S. João de Brito, do Colégio do Sagrado Coração de Jesus, do Cinema Camões (junto ao velho Mercado), da Festa das Laranjas, em S. Lázaro; o tempo das praias fluviais, no Sabor, da Escola do Magistério Primário, na Travessa da Misericórdia; o tempo da Feira das Cantarinhas, dos passeios, na Avenida João da Cruz…
Era o tempo em que os estudantes se juntavam, na Praça da Sé, junto do Cruzeiro, e aí permaneciam largas horas, em pé, fumando o seu cigarro, contando anedotas, e conversando animadamente sobre qualquer tema que viesse à baila; o tempo em que as raparigas não podiam frequentar, sozinhas, o Café; o tempo das verbenas, perto do rio Fervença que, no verão, cheio de imundície e de mosquitos, em água parada, exalava um cheiro nauseabundo.
Não havia o Centro Cultural, os Centros Comerciais, as enormes rotundas, as grandes avenidas…; o campo de futebol ficava junto do Toural que, por sua vez, deu lugar a uma urbanização.
Era o tempo dos grandes nevões, do grande frio, do plúmbeo céu, durante semanas, sem indícios de qualquer raio de sol; o tempo da grande admiração pela construção da Estalagem de S. Bartolomeu, na Estrada de Turismo, onde começa a escadaria para a Capela do mesmo Santo, de cujo recinto nos acompanha a grande nostalgia da festa de Agosto, e fervilha ainda, em nós, o êxtase que nos tomava, ao admirarmos a cidade, do miradouro daquele lugar sagrado.
Aparte leves atritos e discussões, seguidos de uma saudável reconciliação, havia uma grande camaradagem, tradições que se cumpriam religiosamente, respeito e educação.
Mas os tempos mudaram; as gentes mudaram… Bragança cresceu muito e, não tendo sido imune a muitos dos vícios das grandes cidades, viu-se a andar nas bocas do povo, sobretudo por estranhos e graves motivos, entre os quais podemos referir o movimento das “Mães de Bragança”; e, recentemente, o bárbaro assassinato de um jovem estudante do Instituto Politécnico.
Custa a acreditar que não seja seguro viver em Bragança. Mas talvez se torne necessário parar e meditar um pouco, nalguma indispensável prevenção, para não sermos surpreendidos em situações imprevistas, desagradáveis e, acima de tudo, condenáveis.

Manuel António Gouveia

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