(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Quando hoje de manhã e como é habitual, cheguei à Praça da Sé deparei-me, com o quadro habitual de espaço publico não frequentado.
A minha teimosia, que é um sentimento de inconformação, levou-me uma vez mais, a pensar, quantas vezes a minha cidade desde os primórdios da sua fundação já experimentou nos seus locais públicos de socialização, abandonos como aquele a que está votada desde que começaram as obras de beneficiação e alindamento de alguns aspetos que foram alterados no centro histórico.
As últimas impressões têm a ver com a Pandemia Covid19 que obrigou a que o Estado de Emergência fosse declarado e tivesse dado o golpe de misericórdia nos projetos que a sociedade civil estava a tentar concretizar para dinamizar esta parte da Cidade.
Ao fazer a análise dos vários períodos desde o Foral de D.Sancho l, em 1187, até ao presente deparam-se-nos alguns períodos mencionados em que a estagnação é evidente, pelas mais várias razões, muitas delas devido a guerras e num certo período, após o colapso da Indústria da seda e até ao século XIX por força do Santo Ofício que tanto mal causou ao povo transmontano.
Chegados ao século XX e muito particularmente após o 28 de Maio, com o advento do Estado Novo, lenta mas progressivamente, a melhoria das infra estruturas torna-se uma realidade e o povo ao conseguir deixar certos atavismos até ali condicionantes, criou uma dinâmica espantosa de progresso e igualdade nunca até ali sentida e participada por todos os cidadãos que foram diluindo as barreiras sociais que obstavam a tal. Processo lento mas que a segunda metade de século XX já pode desfrutar.
Foi exatamente no último ano da primeira metade da dita centúria que eu nasci, Agosto 1949. Tomemos como base cronológica a década de 50, que me parece que é o tempo que sucede à 2ª Guerra Mundial (WW2) e em que o país estava na senda de um progresso anunciado e que se podia ver nos serviços públicos, na rede viária, na construção de pontes e barragens e no Ensino nos três níveis instituídos.
Toda esta mescla de tópicos, é o elemento onde assentam todas as minhas memórias que preservo e que de quando em vez me dá vontade de contar à cidade que tem a pachorra de me ler, penso que por também ela sentir uma grande nostalgia dessa época de mudança feita com vagar mas com objectivos bem definidos. E então para concretizar a imagem gravada no meu cérebro, socorro-me, não dos edifícios ou dos arruamentos, mas das pessoas que habitavam o espaço que me foi dado habitar no meu tempo de criação e ao qual regressei fisicamente, mas do qual embora fora nunca saí de espírito completamente. Surge-me na mente um quadro pitoresco de uma "instituição " que felizmente terminou, mas que era benquista por toda a gente e servia de motivo para a frequência generalizada da Praça da Sé. Refiro -me aos "Engraxadores " que trabalhavam ao domingo de manhã nos passeios da Praça e que davam um colorido e uma dinâmica à urbe que definitivamente perdeu com o seu lento mas irreversível desaparecimento. Há a considerar aqui o principal motivo do seu desaparecimento, que globalmente foi coisa boa e um certo saudosismo bacoco que possa parecer a sua recordação sentida como perda.
Não será da minha pena que sairá palavra que defenda a razão última de tal "metier", mas também me parece hipocrisia que se torne um tabu a simples menção a tais operários. Por isso sigo em frente com algumas lembranças e direi que o faço com admiração por aqueles que vi sentados nas caixas de "Engraixa" engraxando os sapatos ou botas dos seus fregueses e simultaneamente seus amigos. Há um que será sempre para mim uma agradável memória dada a amizade que sempre me dispensou, direi com ironia, até ao dia do meu casamento.
O Cantaria era nesse tempo quarteleiro dos Bombeiros, quando por razões inesperadas faleceu. Tinha um outro irmão, Adriano que era muito semelhante fisicamente, que creio, já tinha falecido algum tempo antes. Juntamente com alguns outros companheiros fazia parte do grupo de engraxadores que faziam o domingo da Praça da Sé uma aguarela de cores vibrantes que se distinguiam pela sua reciprocidade nos argumentos usados nos diálogos entre eles e a clientela.
Recordo alguns para além dos Cantarias, donde destaco o grande Zé Recho, homem decidido e grande brigantino, alguns dos Tripeiros da Vila, o Bebe Água, legionário e outros que por necessidade faziam o que o progresso extinguiu mas que não era nem por sombras ofício de subserviência, antes de dignidade e honra. Era honradamente e deitando para trás o preconceito que ao fim da manhã quando pousavam as escovas e os panos do lustro, guardavam a caixa da graxa e podiam retirar do bolso as moedas que tinham ganho e que era uma ajuda para somar ao pouco que ganhavam nos seus trabalhos durante a semana e assim poderem dar de comer e educar os filhos.
Dos diálogos entre este homens e os que esperavam pela conclusão da limpeza dos sapatos se recolhiam lições de convivência e igualdade e também de humor às vezes brejeiro que tornava o convívio em coisa de homens e de não aconselhável a senhoras ou meninas. Diga-se em abono da verdade que havia mais rudeza na linguagem naquele tempo, mas também mais franqueza e amizade. Complementavam os engraxas a azáfama dos Cafés que por sua vez, estavam sete dias à semana prontos para confirmarem que Bragança era uma cidade que possuía já nesse tempo uma rede de bons Cafés e Restaurantes capazes de servirem os melhores produtos aos mais honestos preços e com qualidade e competência.
Do dinamismo e empenho dos Comerciantes e do labor constante deste grupo de homens que ocupando a base da pirâmide social faziam a cidade parecer uma cidade, se desenvolvia esta harmoniosamente e com capacidade social para criar nos seus filhos e nos que a escolhiam como bons cidadãos o orgulho de serem Brigantinos.
Não tenho engenho para descrever o ambiente que era fácil sentir quando num domingo de manhã de sol, após a missa das 09:30, se deparava com a praça cheia de gente que discutia os mais variados assuntos e sem reservas dialogavam literalmente com a certeza de o fazerem para quem compartilhava dores e anseios. A Praça da Sé era o local de excelência que Bragança usava para trabalhar e socializar.
Com os engraxas que mencionei se concretizou o meu tempo de criança, fazendo desse lugar o centro da minha existência de participação. Juntarei os barbeiros que tinham também uma parte substancial da aura que a Praça dispensava aos naturais e visitantes. Havia alguns engraxas que eram solicitados diariamente para irem dentro das barbearias atender clientes que aproveitavam o tempo de escanhoarem os queixais e cortarem as melenas para darem brilho ao sapato fino ou aos butes de calfe que os sapateiros da Cidade confecionavam e que os senhores Engenheiros e os mais abastados calçavam da mão artista do tio Malã, João Correia ou do Senhor Sebastião ali ao lado da casa do África.
Cresci com a ideia de que a minha terra era uma cidade onde a gente era feliz e que os mais felizes eram os operários e os artistas que cumpriam com o seu trabalho e dignificavam o seu viver. Eram eles quem davam movimento à fábrica da Cidade.
Voltando aos engraxas que são a razão de eu estar "p'raqui" a falar disto, houve um tempo já na década de sessenta que chegaram a Bragança dois indivíduos que ocuparam o espaço direi, mitológico dos Cantarias e seus pares. O primeiro penso, foi o Zé Luís que ganhou fama de filósofo e o Lá Minuta que era um homem pequeno de óculos de fundo de garrafa que consigo trouxe a família, tendo-se fixado e já na ausência dos naturais por morte ou emigração conquistou um lugar de permanente nas artes do polimento (Zé Luís, Dixit). O Cantaria depois de ter passado pela cinema, nas colagem e distribuição de programas, esteve de roupeiro no GDB, onde fora atleta, indo depois substituir o Senhor Manuel Pires como quarteleiro dos Bombeiros. Foi aí onde eu mais privei com ele pois foi quem me inscreveu como sócio e dada a amizade antiga entre o meu irmão Armando e ele nos tornámos amigos do peito.
Quando me casei, em 1971, convidei-o para o casamento, tendo ele declinado por exigência profissional. Era o quarteleiro e os bombeiros estão sempre de serviço, disse-me. Combinámos então que quando acabasse a festa do casamento ele, iria buscar tudo o que tivesse sobrado e o colocaria numa mesa dentro do Quartel e o serviria a todos os bombeiros que quisessem participar. Assim aconteceu pois ainda me apercebi da saída de algumas coisas.
Na manhã seguinte quando me levantei soube que ele tinha falecido. Qualquer problema com a administração de Penicilina à qual era adverso causou o drama. Eu estava na tropa e tive que regressar ao R.C.P. antes de se realizar o funeral, daí a minha afirmação nas primeiras linhas desta crónica, que foi meu amigo até ao dia do meu casamento.
É esta crónica uma quase confissão de sentimentos que me ligam à minha terra. Ela é o cadinho onde fui moldado e o seu povo foi o alquimista que forjou este modo de estar e de sentir.
Também me brindou com esta esperança de a ver renascida como a Fénix da lenda que renasce das cinzas e que se tornou no paradigma dos que acreditam, como Eu.
Bragança 10/05/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)
Mais um belo mergulho no nosso passado comum, caro amigo Toninho, gostei imenso de recordar amigos e conterrâneos que, com o seu equipamento "assentava arraiais" na Praça da Sé e, além de nos abrilhantarem o sapatos, contribuíam para dar vida à nossa Sala de Visitas...
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