sábado, 30 de maio de 2020

Candy

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


Terminei o dia de trabalho. Não queria fazer mais nada, estava saturado, farto!
Arrumei as coisas da secretária para uma gaveta, como se varresse o lixo para debaixo do tapete. Empurrei tudo para o recipiente aberto e encerrei-o em seguida com uma sonora pancada. Despedi-me dos meus companheiros de escritório, de forma seca e ausente e procurei ar puro, com avidez, no exterior do edifício.
Estava já escuro, as pessoas passavam apressadas, embrulhadas em casacos, protegendo-se do vento cortante… como detesto o inverno… sair de casa de noite e regressar de noite.
Desde o início da tarde que o estômago me ardia, num mal-estar permanente; estava assim desde que soube que o meu supervisor chegaria amanhã, para uma reunião especial.
"Mas que raios, quererá ele comigo?" Pensei diversas vezes. "Não me lembro de nenhum problema, nem nenhum erro cometido recentemente. Na certa vamos ter nova vaga de despedimentos e eu vou ser o primeiro." O azedume do estômago aflorava-me à boca.
 Passei a paragem do autocarro e decidi ir a pé para casa, "ruminando" na minha pouca sorte; com duas semanas de separado, o que me estava a faltar era mesmo ser despedido. Joana fora intransigente e impulsiva, como era sempre, aliás. Sem dúvida que, esquecer a Francisca no infantário era muito mau, mas as coisas que Joana me disse, mereceram bem as minhas respostas e aliviaram o meu remorso… agora estavam as duas na casa da minha sogra, para gaudio desta última, a velha viúva azeda que nunca gostou de mim. "Mas se ela acha que vou pedir desculpa por ter dito o que merecia ouvir, que pense melhor!" Resmungava para comigo.
Parei numa pequena tasca e pedi cerveja, "Com Favaios!", acrescentei depois. Foi apenas a primeira, depois veio outra e mais outra, parei nem sei quando. Quando chegou a altura de pagar, nem percebi a quantidade de cervejas que havia na conta, mas achei caro… ou tinha bebido muito.
Sentia-me mesmo embriagado. Hesitava ao evitar os obstáculos, a cabeça estava um pouco confusa e havia um zumbido permanente nos ouvidos, a perturbar-me. Fiquei contente por ter vindo a pé, assim tinha tempo para que "os vapores se dissipassem." Agora que pensava naquilo, ultimamente os meus dias acabavam embriagado, ou quase, mas até aí, fora sempre em casa. Era a primeira vez que bebia tanto, sem ser para se deitar de imediato. "Nota mental: não é bom beber fora de casa, a cama está demasiado longe."
À medida que me afastava do centro da cidade, as ruas estavam com menos transeuntes. Por fim, entrei numa alameda, na qual nunca tinha reparado muito bem, porque quando passava de automóvel ia compenetrado na estrada e se vinha de transporte público, estava demasiado apertado para ter vontade de apreciar a paisagem. Mas a verdade é que havia vivendas bastante bonitas, conseguia-se divisar, mesmo com o tempo escuro e invernal, grandes relvados, para lá dos muros baixos, fazendo realçar a grandiosidade dos edifícios. Gostava de um dia conseguir ter dinheiro para uma casa destas, mas agora com a separação... pensão de alimentos… "Pobre Francisca, minha filha querida, ainda não sabes como a tua vida vai mudar." Este pensamento fez-me limpar uma lágrima.
As frondosas árvores, de ambos os lados da rua, quase não deixavam a fraca luminosidade do fim de tarde chegar ao chão, criando um rendilhado de luz e sombra e retirando o pouco calor dos idos de outubro. Um arrepio percorreu-me a espinha, à medida que entrava naquele frio mundo de sombras.
Ia já a meio da travessia, quando me apercebi de algo que se moveu no jardim onde passava e olhando naquela direção, divisei uma criança envergando um casaco grosso castanho e uma botas de água vermelhas, sobre um pijama cor-de-rosa. Aparentava ter uns cinco ou seis anos e não havia nenhum adulto à vista. O murete do jardim não tinha mais do que uns cinquenta centímetros, facilmente transponível e ela andava a remexer nos grupos de arbustos que enfeitavam o relvado bem cuidado. Senti um aperto no coração ao lembrar que poderia ser Francisca, sensivelmente da mesma idade, sozinha e sem vigilância, tão próxima da estrada e à mercê de estranhos.
— Olá. — A menina apercebera-se da minha presença. — Viste a Candy? É uma gatinha pequenina, toda branca, com uma mancha negra na testa.
— Olá. — Respondi. — Não, não vi, mas uma menina tão pequena não devia estar cá fora sozinha, pois não?
— O papá está a trabalhar, a falar ao telefone e não viu que a Candy fugiu. — O sorriso dela era desarmante. — Eu não o incomodei, a mamã está sempre a dizer para eu não aborrecer o papá quando ele está a trabalhar.
— Já sei como se chama a tua gatinha e tu, como é o teu nome? — Sorri-lhe de volta.
— Chamo-me Lúcia e tu?
— Meu nome é Pedro. Já fugiu há muito, a bichinha? 
— Foi há poucochinho. A porta da cozinha estava aberta e ela fugiu. Foi quando o papá veio deitar o lixo, o telefone tocou e esqueceu-se de fechar.
Como a criança retomou a busca, decidi-me a ajudá-la, afinal não tinha nada melhor para fazer e não havia ninguém à espera em casa. Afadiguei-me a sacudir arbustos e a espreitar os ramos das árvores, na tentativa de divisar a criatura.
— Sabes? — Comecei. — Tenho uma filha mais ou menos da tua idade.
— A sério? — Ela parou para me olhar. — Como se chama? Porque não a trouxeste para nos ajudar a procurar?
— Chama-se Francisca e não a trouxe porque não sabia que ia encontrar uma menina bonita como tu a precisar de ajuda. — Respondi, sem conseguir suster um sorriso.
— A mamã diz que Deus põe as pessoas certas no nosso caminho, quando precisamos delas. — Ela fez uma cara séria enquanto acenava com a cabeça afirmativamente.
— Então achas que Deus me enviou para te ajudar a encontrar a Candy? — Ergui as sobrancelhas interrogativamente. — Ou foste tu que foste enviada para me ajudar de alguma forma?
— Oh, isso já não sei, é muito complicado para mim. — Ela fez uma careta divertida. — O que anda a fazer a tua Francisca?
A pergunta acertou-me de chofre e por uns segundos fiquei "engasgado" sem conseguir responder.
— Ela… Está com a mãe. — Acabei por dizer.
— Com a mãe? Não estão em tua casa? — A argúcia da criança surpreendeu-me.
— Bem, não. A mãe achou que precisava de ter "umas férias" e foi para casa da avó da Francisca. — Ajoelhei frente a ela para ficarmos cara-a-cara.
— Isso não é bom! — Lúcia arregalou os olhos numa expressão mista de espanto e seriedade. — A Francisca deve estar muito triste por não te ver, eu ficava de certeza, se estivesse longe do meu papá. Devias ir buscá-la, já, já para o pé de ti, dar-lhe muitos beijinhos e pedir desculpa por teres deixado que a levassem embora. — Quase não conseguia suster as lágrimas perante a reprimenda da criança, mas ela não se deteve. — O meu papá passa muito tempo ao telefone e a mamã ralha muito com ele, mas eu não gosto que eles discutam. Por vezes, ele está a falar com os clientes, mas tem sempre um sorriso e uma festinha para me dar.
Virei o rosto para o lado, para ocultar uma gota teimosa, que se escapava pelo canto do olho. Revia ali a minha história, pela voz de uma criança.
— A vida não é assim fácil, minha querida. — Fiz-lhe uma festa no rosto suave e infantil que fitava atentamente o meu, triste e envelhecido. — Muitas vezes deixamos que o nosso emprego se coloque acima do que é realmente importante e ao fim e ao cabo, o trabalho só nos traz desilusões.
— Vai correr tudo bem, vais ver! — Ela fez um sorriso radioso. — Fala com a mamã da Francisca, se estiverem todos juntos, tudo o resto vai correr bem! — No mesmo segundo, retomou a sua busca, indiferente à comoção que me causara. 
Eu continuei de joelhos no relvado, pensativo. 
— Acho que ela não está aqui. Terá fugido para o outro lado da rua? — A criança perguntou em voz alta.
— Não. — Respondi alarmado, enquanto limpava as lágrimas à manga do casaco. — Não deves atravessar a rua sem a mamã ou o papá. Eu vou tocar a campainha e digo que é preciso ir procurar do outro lado.
— Espera. — Ela começou a correr, através de uma sebe lateral, para as traseiras da casa. — O papá está a trabalhar, não o incomodes, eu vou ver se a Candy já voltou, se não, digo ao papá que vou procurar na casa da vizinha.
Passaram-se longos minutos sem qualquer atividade. As luzes no interior da casa continuavam com a mesma tonalidade, sem aspeto de serem ligadas outras ou apagadas aquelas. Debati-me um pouco com a intenção de tocar à campainha ou espreitar as traseiras da vivenda, mas acabei por concluir que a gata já deveria estar em casa e que a criança se esquecera de mim, entretida a brincar com a amiga.
  Retomei o regresso a casa, com os vapores do álcool quase completamente dissipados. Peguei no telemóvel, marquei um número, por demais gravado na minha cabeça e aguardei, enquanto me torturava mentalmente: "Nem sequer vai atender".
— Estou? — A voz de Joana ecoou, triste, no meu ouvido.
— Olá querida, como tens andado? Como está a nossa menina? Sinto muito a vossa falta, sabes? — Inquiri, com as lágrimas novamente a assomar aos olhos.
Percorri o resto do escuro caminho a falar com ela, a minha esposa, mulher que eu escolhi e mãe da minha filha, que eu nunca deveria ter deixado que se afastassem de mim. Choramos ambos ao telefone, pedimos desculpa, lamentamos o que estávamos a fazer a nós e à doce Francisca. Naquela mesma noite peguei no carro e fui buscá-las para a casa de onde nunca deveriam ter saído e foi um dos episódios mais felizes de toda a minha vida.
Também o dia seguinte tinha boas novidades: a temida reunião, era para me aumentar e dar novas responsabilidades, uma progressão na carreira… a pequena Lúcia tinha razão, assim que estivéssemos juntos, tudo ficaria bem.
No fim do expediente, regressei pelo mesmo caminho do dia anterior e entrei na sombria alameda. Nem parecia a mesma do outro fim de tarde, muito mais luminosa, com alguns automóveis estacionados e pessoas a circular nos passeios.
Consegui chegar à casa de Lúcia, que identifiquei facilmente pelo alpendre e as sebes baixas que separavam o relvado do passeio. Uma senhora rondando os quarenta anos, aparava a sebe com uma tesoura de poda.
— Boa tarde — Saudei a mulher, que me olhou com curiosidade antes de responder à saudação. — A senhora deve ser a mãe da Lúcia, suponho.
— Sim. — Confirmou ela demonstrando suspeição. — Quem quer saber?
— Desculpe-me o abuso, meu nome é Pedro e conheci a sua filha, criança maravilhosa. — A mulher franziu o sobrolho. — Ela disse-me coisas fantásticas e eu queria agradecer, pois tudo o que me disse foi realidade. É verdade, quase me esquecia, a Candy apareceu?
— Candy?!? — Ela corou e, com os olhos húmidos, gritou-me. — Quem é você? Que quer daqui? Desapareça!
— Como?!? — Estupefacto com a expulsão e sem saber como reagir, obedeci, afastando-me. — Está bem, desculpe, mas não entendo o motivo para se ter ofendido.
Olhei por cima do ombro algumas vezes, enquanto me afastava, ela estava parada, a vigiar os meus passos.
— Espere! — Gritou-me. — Volte, por favor. Desculpe-me, quero fazer-lhe uma pergunta.
Regressei, mas mantive-me a uma distância segura, enquanto ela, sem largar a enorme tesoura de poda, me avaliou com o olhar.
— Quando conheceu a minha filha? — Interrogou.
— Ontem à noite, quando regressava a casa do emprego. — Respondi prontamente.
— Era a minha filha, a Lúcia? — A mulher não acreditava.
— Não sei se era sua filha, estava neste jardim, disse que esse era o nome dela e, quando foi embora, foi por aquela passagem na sebe para as traseiras dessa casa. — Assegurei.
Contei tudo o que se tinha passado, a nossa conversa enquanto procurávamos a gatinha Candy, que nunca cheguei a ver e descrevi a forma como a menina estava vestida.
A mulher, que desde o reinício da nossa conversa mantinha uma mão sobre a boca, moveu-a para os olhos e explodiu num pranto.
Cada vez mais atrapalhado, não sabia como reagir e aproximei e afastei várias vezes a mão, indeciso se a deveria ou não tentar acalmar. Não foi preciso, no entanto, pois ela conseguiu dominar-se sozinha.
— A minha filha Lúcia, morreu há três anos, aqui mesmo em frente à porta, vestida da forma como me descreveu. Foi atropelada, quando saiu de casa, sem que o meu marido se apercebesse, atrás da gatinha que lhe déramos no aniversário. — A mulher pareceu ter envelhecido vários anos, com o choro e o soluçar que lhe afrontavam o peito. — Não sei quem você é, se está a falar verdade, se é um mentiroso ou um pervertido, que vem com intenções escusas, mas acredito que a minha menina ainda anda por aí, perto de mim. O cheiro dela nunca desapareceu do quarto e por vezes acho que a ouço cantarolar, ou rir no jardim.
— Lamento, minha senhora, não sabia… não percebo… — Tentei desculpar-me, completamente confundido.
— De qualquer modo, — Ela não se deixou interromper. — gosto da ideia de ela ter sido um anjo, que Deus me emprestou por algum tempo e agora anda por aí a fazer o bem. Se está a falar verdade, fico feliz, se está a mentir, não quero saber. De ambas as formas, peço-lhe que se vá embora, respeite a minha dor e não volte mais. — Com isto virou-me as costas e saiu do relvado pela mesma passagem utilizada por Lúcia no dia anterior.
Ainda hoje, muitos anos depois, não sei exatamente o que se passou naquele fim de tarde, quem era aquela criança que encontrei, à procura de uma gatinha que não cheguei a ver. Mas cada vez que penso nisso e, abraçado a Joana, vejo a minha Francisca crescer feliz e saudável, não posso deixar de acreditar que Lúcia era mesmo um anjo que Deus trouxe ao meu caminho, para me levar a fazer o que era correto.


Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.


Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.

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