terça-feira, 26 de maio de 2020

Nós Transmontanos, Sefarditas e Marranos - MANUEL LOPES UM JUDEU DO TEMPO DA INQUISIÇÃO 3

Manuel Lopes continua a descrever na inquisição de Barcelona o seu percurso de vida: Torre de Moncorvo, Lebução, Bragança, Chacim, Lisboa,Livorno.

Chegados a Livorno, trataram de arranjar forma de viver, empregando-se João Ventura na sua arte a tecer lenços de seda. Manuel, que não tinha completado a formação de torcedor de sedas e por isso não podia exercer a profissão, foi a servir em casa de um mercador chamado Samuel. (1) Ao fim de dois meses, Manuel e o irmão foram circuncidados, tornando-se judeus públicos. Adiante haveremos de ver a descrição da cerimónia, feita na casa de morada de seu primo e companheiro de infância em Lebução, Domingos Nunes Ferro, que os acolheu. 

Em casa de Samuel, serviu como criado, por 4 meses e pouco. Saiu, por desentendimentos que teve com um filho do seu amo. Logo seu irmão, conversando com Abraham do Vale, lhe arranjou novo emprego, na cidade de Pisa, em casa do pai deste, que se chamava Jacob do Vale. Pai e filho eram casados, “homens ricos e de negócio” que tinham vindo de Jerusalém.

Em Pisa, encontrou Manuel alguns conhecidos de Lebução. Um deles chamava-se Jerónimo Álvares, e era mestre torcedor de sedas, que em Pisa exercia também o ofício de cirurgião. Tinha com ele a mulher, Antónia Lopes, 1 filho e 3 filhas. Uma delas casou naquela altura, com um homem cujo nome o Manuel não soube dizer, mas que era o marido de Ângela, a mulher que em Alicante embarcou com um cunhado e vinham exatamente a tentar impedir este casamento. Não impediram, porque o marido a rejeitou, baseado no facto de ela o ter traído. (2)

O outro chamava-se Pedro e era natural de Bragança. Fora para Lebução a trabalhar como oficial torcedor de seda em casa de mestre Jerónimo. De Lebução regressara a Bragança para casar com uma Isabel. Ao cabo de um ano, Isabel morreu e Pedro ficou com uma irmã da falecida, Leonor, de seu nome, e com ela se foi para Itália, onde Manuel Lopes voltou a encontrá-los. E todos frequentavam a sinagoga de Pisa “onde se faziam as mesmas cerimónias que em Livorno”.

Não se fez velho em Pisa o Manuel Lopes. Ao fim de 2 meses e pouco, regressou a Livorno. E então aconteceu mais uma história exemplar. Pedro, o torcedor de seda de Bragança e Lebução, também deixou Pisa e voltou para Livorno, juntamente com a mulher e um filho que tinham, hospedando-se também em casa de Francisco Nunes Ferro. Vinha disposto a regressar a Portugal, dizendo que não conseguia sustentar a família. Porém, os dirigentes da comunidade, receando que o regresso dele e da mulher os levasse às prisões da inquisição e arrastasse outras mais prisões, lá lhe arranjaram emprego e apoios financeiros para se manter em Livorno. 

O mesmo não aconteceu a Manuel que, pouco tempo depois, ao fim de 9 meses de estadia por Itália, embarcou em um navio francês com destino à pátria sefardita, metendo-se a servir o capitão do navio, para pagar a viagem.

Chegou a Lisboa em agosto de 1701 e foi viver para casa de seu tio paterno, João Dias Pereira, vindo de Castela pouco tempo antes com a família e que logo o mandou a terminar o curso de torcedor de seda em casa de um tecelão chamado Manuel da Costa.

Desta vez ficou-se por Lisboa durante um ano e pouco, mas teve ocasião de ver muita gente conhecida, de saber de muitos parentes e amigos presos pela inquisição em Trás-os-Montes e outras terras e presenciar muitas fugas, com medo do santo ofício. Inclusivamente, teve oportunidade de assistir à celebração de um auto-da-fé, na igreja de S. Domingos, em 22.3.1702, recordando-se que na procissão, entre o palácio da inquisição e a igreja reconheceu Ana Cardosa e suas filhas, Ângela e Violante Maurícia, que iam vestidas com o sambenito, entre os penitentes. (3)

Ana Cardosa era natural de Almendra, terra de Riba Côa, onde viveu até aos 16 anos, altura em que foi ajustado o seu casamento com Manuel Lopes Galego, (4) de Chacim, terra onde o casal assentou morada. Anos depois, receando ser presos pela inquisição, foram-se para Lisboa, onde o Galego “vendia especiarias pelas ruas”, enquanto não surgiu oportunidade de fuga para o estrangeiro. Manuel Lopes encontrou-o, a primeira vez na rua de S. José e depois foi muitas vezes a sua casa. A propósito, desta família, contaria aos inquisidores:

- Depois de se ter celebrado o dito auto-da-fé, foi muitas vezes vê-las ele confitente a sua casa, que a tinham na rua de S. Antão da Mouraria e também na rua dos Canos, para onde depois se mudaram (…) E continuando a ir vê-los à dita rua dos Canos, na ocasião lhe dissera a dita Ana e seus filhos, perguntando por Manuel Lopes Galego, porque havia alguns dias que o não via, nem havia encontrado em casa, que os ministros da inquisição, tinham ido perguntar pelo dito Manuel Lopes Galego, marido e pai de seus filhos, e presumindo que o queriam prender, se tinha escondido em casa de Luís Lopes Pereira, seu cunhado. E que, continuando os ditos ministros a ir perguntar por ele, tinham respondido que estava na tenda a vender açafrão; e com estes temores, dispusera-se a ausentar-se de Lisboa, como o fez, embarcando-se em um navio pesqueiro, que se chamava Estafeta, da Holanda, e estando já embarcado o dito Manuel Lopes Galego e o dito Luís Cardoso Pereira, irmão de Ana Cardosa, o foi acompanhando e a seus filhos e filhas uma noite até um sítio que se chama Belém, distante de Lisboa uma légua, recebendo-o por já estar avisado, o capitão do navio, da lancha, e se foram com efeito para a Holanda. (5)

Companheiro assíduo nas andanças de Manuel por Lisboa era um Gabriel Rodrigues Pinto, natural da vila de Moreira e morador no Porto, filho de Manuel Pinto, de Torre de Moncorvo, o qual estivera preso na inquisição de Coimbra e saiu penitenciado em 11.12.1701. (6) A propósito, diria Manuel Lopes:

- Gabriel Rodrigues Pinto esteve preso em Coimbra por judaizante, e sabe, por ser público em Lisboa, por ele próprio ter dito e também Francisco Marcos Ferro, de quem já disse. E saíram os dois ao mesmo tempo da inquisição de Coimbra (…) Gabriel cumpriu a penitência e parte dela na paróquia de S. Lourenço, em Lisboa, com sambenito; e acabada a missa, tirava-o e o levava debaixo da capa, de volta a sua casa, que tinha no Bairro de Alcântara; e vendia tabaco (…) de 32 anos, alto, bem elegante de corpo, nem gordo nem magro, cara larga, branca, olhos azuis, barba e sobrancelhas e cabelo ruivo irizado e curto e um pouco calvo até ao pescoço. (7)

Aliás, foi através de Gabriel Pinto que Manuel Lopes conheceu o intérprete, de quem atrás se falou, assim como Francisco Marcos Ferro, Simão de Vivar, David Brandão e outros, originários de Torre de Moncorvo e Mogadouro, todos ligados entre si, como haveremos de ver.

Notas:
1-Numa primeira audiência, disse que se chamava Abraham.
2-Pº 630-L, tif 232: - E chegados a Livorno, tendo sabido que o marido estava em Pisa, o mandaram chamar; e com efeito seu marido veio a Livorno e esteve com a mulher e irmão e não os quis admitir em sua companhia, por causa de que havia sido adúltera; e vendo isto, a dita mulher voltou para Espanha, e o dito seu marido casou com a outra.
3- Inq. Lisboa, pº 6606, de Ana Cardosa; pº 6602, de Ângela Cardosa, 17 anos; pº 6996, de Violante Maurícia.
4- Pº 6606-L, tif 65: - Há 32 anos, em casa de sua mãe, Leonor Pereira, que tratava de ajustar o seu casamento com um homem que não se lembra o nome, casado com uma sua tia chamada Violante Nunes e com efeito se ajustou o casamento com Manuel Lopes, que assistia em Chacim, partira ela declarante para a dita vila…
5- Pº 630-L, tif 217-218. 
6- Inq. Coimbra, pº 8335, de Gabriel Rodrigues Pinto.
7- Pº 630-L, tif 49.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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