segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O meu pai, eu e a minha criação

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Sr. Luís Bombadas: O meu pai já em idade avançada e em dia de matança do porco em casa do meu irmão mais velho. A seu lado está a minha filha mais velha, Bela. Foto captada pelo nosso querido amigo João fotógrafo da Foto 101.

Desde que comecei a ter entendimento do que me rodeava que considerei normal a azáfama constante da vida em minha casa, na minha rua e na minha cidade. Azáfama que tocava a todos, pois que sem trabalho não havia pão.
Claro que era outro tempo e a sociedade não tinha ainda sido mecanizada e estavam longe no tempo as facilidades que hoje possuímos a nível de rede viária, veículos seguros, telemóveis e computadores.
Mas regressemos ao tempo em que se punham remendos nas calças e os sapatos eram refeitos inúmeras vezes, assim como o restante vestuário que também era remendado, cerzido, adaptado e usado um tempo demasiado longo se comparado com o tempo de uso médio nos dias de hoje. Como tarefa cimeira que possivelmente ainda hoje o será, estava a obrigação de ter comida na mesa com abundância, para alimentar uma catrefa de filhos e acudir nas outras despesas inerentes à manutenção de uma casa de família. Chegado a este ponto surge como algo acima do meu entendimento a figura do meu pai. Alto para a média desse tempo, musculoso e de rosto regular, com bigode bem talhado e cabelo de risco à direita, penso não mentir ao dizer que era um homem bem parecido e de trato afável. Era também um homem trabalhador no absoluto sentido do adjectivo. Sabia fazer de "tudo" o que dizia respeito à sua arte e sabia cultivar uma horta como se fosse um lavrador de raiz. E fê-lo como eu descrevo até ao fim dos seus dias. Era um homem sereno mas severo para com os filhos, exigindo deles um comportamento social que fosse compatível com o seu quadro moral que se esforçava para nos transmitir. 
Revejo-o hoje a anos de distância, levantando-se do leito às 06:00 da manhã sair para o quintal e lavar-se numa bacia própria que ele colocou para tal fim e que usava todas as manhãs e ao fim do dia quando regressava para jantar, hora sagrada que ele fazia questão de respeitar. Antes da refeição, nova lavagem desta vez mais rápida pois já não constava o fazer a barba que o fazia demorar, mas que ele escrupulosamente repetia todas as manhãs. A água era sempre fria tirada de um cântaro que a minha mãe, sempre alerta, mantinha cheio ao lado da bacia e do espelho para fazer a barba e se pentear.
Saía de casa sempre em jejum e durante muitos anos era um de nós que pelas 10:00 lhe levávamos o café à obra. Era uma cafeteira de 0,5 litro com tampa que a minha mãe preparava com café, algum leite e pedaços de pão de trigo. 
Recordo hoje com clareza e com o mesmo respeito, a forma como ele se retirava do bulício da obra, procurava um sítio para se sentar e serenamente ingeria o que eu diria ser um bálsamo para sarar as feridas do guerreiro. Entregava-me a cafeteira e o seu rosto voltava a ser um rosto quase esculpido, como o são os rostos de bronze de algumas estátuas que enfeitam as praças e jardins das vilas e cidades.
Era um tempo de vivência dura e o que descrevo lembrando o meu pai, poderão os outros dizerem dos seus, pois a maioria dos homens daquele tempo trabalhavam todos e todos tinham profundamente gravado no espírito a diligência e prontidão e não deixavam deslustrar o seu brio de cidadãos e operários.
Com ele aprendi a olhar a vida como uma missão da qual fomos investidos e que obrigava os homens a ganharem com o suor do rosto o pão para os filhos, para si e para os seus. 
Será uma linguagem metafórica a que uso, mas tudo na vida deve ter dignidade e até as palavras que usamos serão mais proveitosas se lha conferirmos na justa medida.
A geração que precedeu a minha foi a geração mais abnegada em termos de equilíbrio entre as várias componentes do homem social português. Esbateram -se as diferenças sociais, melhorou-se o Ensino e progrediu-se imenso nas condições sanitárias e no respeitante à ciência houve progressos que a minha geração já usufruiu em plenitude.
E foi com homens como o meu pai e havia-os com fartura, que na sua rigidez de carácter e força física foram capazes de criar uma outra geração que se alimentou do seu pão e progrediu com a sua dedicação. Do meu pai guardo uma recordação que desejaria que as minhas filhas guardassem de mim quando chegar o tempo e dos homens e mulheres que foram seus condiscípulos, colhi esta minha maneira de olhar a vida.
E hoje resolvi escrever esta pequena prova de admiração e respeito pelos que fizeram de mim um homem feliz e orgulhoso de lhes pertencer.



Bragança 18/12/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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