quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Reencontros

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Na vida de cada um acontecem coisas insólitas que depois do nosso espírito se adaptar à novidade nos fazem refletir na nossa condição de humanos, seres que têm o privilégio de possuírem memória que tudo regista e guarda mais nitidamente ou com menos claridade. É na base desta verdade que nos é possível recordar factos passados e pessoas que conhecemos e quase sem pensarmos no espaço temporal revivermos momentos acontecidos há muito e com uma clareza de cristal.
Nos últimos tempos tem-me acontecido algumas, embora poucas vezes, reencontrar, gente que se dirige a mim e me faz a pergunta sacramental, não me reconheces? Fico embaraçado e faço um esforço mental, mas infelizmente quase nunca acerto. Depois quando o meu interlocutor me elucida, mencionando alguns pormenores, o meu espírito alegra-se, a ponto de não saber o que dizer, pois as memórias se mesclam e me é difícil dizer coisa com coisa em resposta ao momento.
Durante toda a vida que vai já adiantada me relacionei com pessoas de todas as idades e condições. A verdade é que nem com todos fiz amizade do peito. Eu como toda a gente tenho preferência por certos tipos de pessoas que acrescentem algo à minha passagem pela vida. Verdadeiramente as minhas preferências são pouco ou nada exigentes, bastando-me que a pessoa seja honesta, trabalhadora e respeitadora do seu semelhante. Os amigos que me tem calhado rever nos últimos tempos, são cultores destes princípios o que me faz feliz e achar que as minhas escolhas em coisas de amizade não foram o meu pecado.
Quando passei pelo Flórida tive, melhor, a firma teve, um grupo alargado de trabalhadores que eu considerava de primeira classe. Destes, que eram muitos, destacarei um que tinha a capacidade de ser o mais competente e simultaneamente o que mais problemas causava ao regular funcionamento do Restaurante. E era exatamente essa a razão porque eu gostava dele e sempre passei pela parte menos boa sem reclamar, pois estava certo que um dia ele pensaria seriamente e acabaria com o descaminho que lhe prejudicava a vida e a aceitação social. Em suma, ele estragava em duas horas o prestígio que angariava durante vinte e duas.
Chegado aqui é bom de ver que foi um tempo para ele em que a sua personalidade se afastou do caminho da sobriedade o que inexoravelmente o arrastava para o caos. Mas a parte boa prevaleceu sobre a má. Entretanto misturado com tudo isto teve um acidente de moto que o abalou fisicamente e teve um efeito avassalador na sua vida. Mas o homem tem uma capacidade grande de se regenerar e ele era possuidor dessa capacidade. Entretanto eu fui para Inglaterra e nunca mais o voltei a ver. No entanto a minha simpatia por ele não se esfumou, sempre que possível perguntava por ele, mas as notícias foram sempre dúbias. Nada de concreto. E eu sempre duvidoso do fatalismo com que algumas pessoas acham que a vida é pródiga, acertei.
Uma manhã do passado mês de Agosto, estava eu sentado na esplanada do Chave D' Ouro e vejo um Senhor vir do lado da Sé e parar diante de mim. Fiquei expectante e aguardei um pouco surpreso pois ele trazia um ar decidido na face. Sorriu e perguntou se eu era o Snr Fulano de tal? Respondi afirmativamente. Fez a pergunta sacramental: -Não me reconhece? Olhei atentamente e pensei ser algum meu camarada da tropa ou antigo amigo de Escola e decidi ser breve dizendo, não. Ele retorquiu, sou fulano que trabalhou consigo no Flórida. Fez -se luz na minha mente. Ali estava quase saído de um sonho um amigo que eu não via há quarenta anos e que eu recordava com frequência mas do qual não sabia se era vivo ou era já do lado oposto.
Abracei-o com alegria e foi aquele um dia feliz pois aqueles que nos acompanham na dureza da vida estarão sempre na nossa memória e sempre nos alegraremos de os encontrar. Fazem parte da nossa vida. 
Ora, depois desta introdução, vou direto ao tema que queria abordar, que é exatamente o escalpelizar todo o mistério que envolve este sentimento da amizade. É sentimento que outros animais e não só nós possuímos. A diferença é de que nós somos capazes de cultivar este sentimento racionalmente e de forma concreta mesmo que concluamos que somos capazes de amar e odiar. Este Verbo Odiar não consigo explicar o seu sentido na realidade por ser demasiado negativo do ponto de vista das relações humanas seja em relação aos nossos pares, bem assim como aos animais ou coisas. 
Diga-se em abono da verdade que eu nunca odiei ninguém nem nada exceto os atos criminosos, que não o indivíduo, que é agente executor do barbarismo.
O homem na sua marcha precisou de se adaptar às dificuldades da sobrevivência que o obrigou a praticar atos desumanos para dominar as feras e os cataclismos que o perseguiam dada a sua condição de mais fraco. Mas a Natureza por razões ainda desconhecidas deu-lhe capacidade de raciocínio que ele usou para dominar e quando o seu polegar se aperfeiçoou tinha já no seu entendimento da dificuldade que tinha em ser pacífico no meio de tamanha bestialidade. É esse período de modelação que se entranhou no seu ser e ainda hoje está latente na sua constituição genética, sendo que um grupo reduzido da humanidade, os criminosos, em inglês, Killers, possuem mais que os outros.
Mas se o que noutra época era uma arma natural e imperativa para sobreviver é também verdade que ele também é capaz através dos indivíduos que foram menos influenciados por essa hereditariedade, ser manso e operativo. É aqui que eu justifico a essência da beleza que é ser-se manso no sentido não absoluto do adjetivo, pois demasiada mansidão faria dele um parasita e o processo evolutivo teria terminado ali e o mundo não teria girado para lhe dar sol e lua para trabalhar e descansar e amar o próximo, mesmo que o não tenha visto durante quarenta anos ou para sempre conforme a sua existência seja curta ou longa.
Por essa razão eu apreciei tanto a visita do meu amigo dos tempos do Flórida e ontem tive o mesmo sentimento ao rever outro que não via há mais de trinta. Estou aos setenta e um anos de idade a compreender a razão por que se guarda amizade que dura uma vida. Não os reconheci à vista mas reconheci-os com o meu coração e a minha inteligência que herdei dos criminosos do princípio dos tempos, aperfeiçoados pelos milénios que ficaram para trás no tempo.

Moral da história: Todo o Homem é meu irmão!



Bragança, 04/12/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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