terça-feira, 2 de março de 2021

BRAGANÇA DESPOVOADA PELA PESTE NEGRA GUERRA ENTRE BRAGANÇA E GIMONDE

 Uma sentença da usucapião que durou pouco:

• A seara da vila

5. A peste negra: o abandono dos campos O corregedor, não se dando por satisfeito com os testemunhos constantes do processo, quis ver, com os seus próprios olhos, o espaço que trazia em pé de guerra o poderoso concelho de Bragança e os moradores de Gimonde – a parte fraca do litígio. Registadas as suas impressões de viagem, utilizou-as depois na sentença, contra as teses dos oficiais da vila. O magistrado, com traços seguros, mostra-nos até que ponto já se tinha degradado a paisagem agrária, mesmo às portas da vila. Se o obituário é o que já sabemos – Bragança perdeu mais de três quartos da sua população -- ficamos agora a saber também quais foram as consequências que 90 anos de pestes trouxeram às áreas reservadas às searas. 

Deste quadro, saía a visão do corregedor sobre o nervo da litigância. Assim, no espaço, disputado por Bragança e Gimonde, só havia montes bravos, cobertos de xarras (estevas); deste solo nunca poderia sair uma terra de lavouras, salvo por acidente, como aconteceu nas últimas sementeiras, em que devastaram muito mato; nas lombas, recém-abertas de clareiras, uns fizeram sementeiras de bouças, outros abriram roças nos montes e apenas alguns, poucos, fizeram searas. 

De tudo o que viu, o corregedor tirou uma conclusão: a coutada da sementeira, efectuada pelos moradores de Bragança, no Outono de 1438, tinha sido feita mais por vontade do que por necessidade. Este quadro, saído da paleta impressiva do corregedor, demolia as declarações dos magistrados do concelho de Bragança. Não tinham eles ditado para o processo, como vimos atrás, que aquele espaço era a “pepita de ouro” da vila para as suas sementeiras? Mas o monte bravio de estevas e mato, que tudo cobria, provava o contrário. Segundo o magistrado, aquela terra nunca produzira pão. E, por maior trato que tivesse, apenas daria o que podia: monte para regalo do gado, miúdo e graúdo. As sementeiras daquele ano de 1438 eram, com certeza, as primeiras, concluíra ele. Mas, mesmo naquele Outono, as lavranças não exigiram muito esforço do arado. É que poucos tinham feito searas. Para desbravar bouças, montes e semear aí algum grão, vieram as queimadas, o machado, a roçadoura e a enxada. Ou seja, as maiores áreas cultivadas eram o resultado de um ingente trabalho braçal. Parecia que as autoridades do concelho, com o procurador à cabeça, não tinham dito a verdade. Mas tinham. 

A falta de contexto compreensivo era de todos, incluindo do corregedor. Nascidos já muito depois da pandemia de 1348, a mais catastrófica, e num tempo de longevidade curta – morria-se antes dos cinquenta anos -- não herdaram a memória histórica anterior. Que só ela podia fornecer ao confronto jurídico a explicação óbvia: a gadanha da peste negra ceifara tanto que destroçou vilas e aldeias inteiras, alastrando o desastre às suas terras de pão. Com terríveis consequências: lavradores, famílias e criados mortos. Outros em fuga. Grandes lanços da paisagem agrária em abandono completo. E pardieiros sepultando aldeias sem ninguém. As estevas e o mato, que tanto impressionaram as retinas do corregedor, indicavam isso mesmo: as antigas searas, depois de dezenas de anos incultas, voltavam, através das estevas, a chamar o monte, que já estava em reconstituição. 

Depois das estevas, que são sempre as primeiras a chegar aos espaços abandonados pelo arado, vinham as giestas, seguindo-se as moitas de carvalhos e os tufos de carrasqueiras, apagando os antigos espaços de sementeira. E o melhor retrato desta guerra pandémica, contra a paisagem agrária, fixou-o, a quente, o corregedor de Trás-os-Montes na sua viagem à Seara, no Outono de 1438. 

6. Em busca das duas aldeias perdidas da Seara Recuemos 180 anos em relação à sentença, datada de 1438, que temos vindo a dissecar. Começamos por apresentar aos leitores os seguintes indivíduos: Didaco Martins, Martinho Mendes, D. Laurêncio e D. Estêvão. Todos se assumiram como moradores da aldeia de Palhares nas declarações que fizeram perante os juízes do rei Afonso III, em Dezembro de 1258. Não nos interessa agora o que disseram. Atentemos apenas nisto: havia então uma aldeia na Seara, anexa da paróquia de Santa Maria da vila de Bragança. E não é preciso apertar muito o nome de Palhares para concluirmos que onde havia palha, havia grão. E, se coube à história confirmar existência desta aldeia, a arqueologia localizou- -a. 

Houve grande perspicácia na eleição do sítio. Virada a sul, muito soalheira, solicitou a protecção de um morro, muito descascado pela erosão, para, mais abrigada, fugir dos ventos gelados de Montesinho e da Sanábria. Ocupou a bordadura cimeira de uma baciazinha descendente, de solos gordos, debruando uma várzea de muita água, dedicada à despensa da horta. Era de Palhares que saíam os cereais que ajudavam a abastecer a vila de Bragança de pão. Extinta pela peste, foi no seu termo que o corregedor observaria, 180 anos depois, a paisagem de monte, onde as estevas inçavam, sepultando as antigas searas, desbravadas com muitas bagas de suor dos moradores de Palhares, nos finais do séc. XII, logo depois da fundação de Bragança. Mais à frente, antes do declive da ponte de Valbom, implantara-se outra antiga aldeia da coutada de sementeira da vila de Bragança. Esta erguera-se sobre um rebordo sul do Guieiro – o cabeço de geologia tão dura que faz rodopiar o Sabor à sua volta. Não comungando das mesmas aptidões do solo da sua vizinha de Palhares, estaria mais virada para a exploração pastoril, embora não pudesse dispensar o arado. Conhecemos dois dos seus vizinhos, que também depuseram perante os juízes do Rei. Um chamava-se Pedro João e o outro Menendo João. Vale da Rata era então anexa da antiga paróquia de S. João de Bragança. 

O monte bravio de estevas, descrito pelo corregedor, cavalgara também sobre as antigas leiras de pão desta aldeia, ceifada pela peste. 

7. Bragança retoma a sua seara Senhor: os moradores desta cidade vivem todos da lavoura. E, enquanto todos os outros lugares da comarca têm onde fazer as suas sementeiras, nós, em Bragança, não temos; (…) pedem, por isso, a Vossa Alteza que ordene ao corregedor da comarca para demarcar, no limite da cidade, uma seara. (ortografia e sintaxe actualizadas) Este foi o pedido que o procurador da cidade de Bragança, Álvaro Gil, fez ao Rei D. João II, nas cortes de Évora de 1490. Respondeu o Rei: que tinha todo o prazer em satisfazer [o pedido da nossa cidade de Bragança]. O juiz supremo decidira. 

Chegava ao fim o longo diferendo entre Bragança e Gimonde. Extinguia-se a vigência dos efeitos da sentença da usucapião de 1438. A cidade voltava à posse da coutada de sementeira, entre o Sabor e o Fervença. Que já era sua antes do eclodir das pestes dos séculos XIV e XV, como vimos no ponto 6. As actuais Quintas da Seara, um modelo de povoamento disperso, único no concelho, são uma herança histórica daquela decisão régia. O topónimo seara foi apagando, no decurso do tempo, o primeiro -- palhares. Mas ambos significam o mesmo: terra de pão. Só mudaram as palavras. O conteúdo ficou. 

Samil, Fevereiro de 2021.
Ernesto Albino Vaz

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