sexta-feira, 12 de março de 2021

O Museu de um Abade que conta a história das gentes transmontanas

 A Rua Abílio Beça, como tantas outras da cidade de Bragança, tem muitas estórias guardadas. Apelidada como “rua dos museus”, acolhe alguns dos edifícios mais conhecidos da cidade, com o emblemático Castelo de Bragança. É também a casa do Museu Abade de Baçal, antigo Paço Episcopal (século XVIII), cujo patrono é um dos homens mais célebres do nordeste transmontano.


Nascido na aldeia de Baçal, onde à época, 1865, se contavam pouco mais de 500 habitantes — hoje, consequência do despovoamento, tem cerca de uma centena a menos — Francisco Manuel Alves, filho de lavradores, haveria de fintar o destino e a tradição. A escola primária feita num sopro foi o início de um percurso notável que o levaria aos 24 anos a concluir os estudos eclesiásticos no seminário de S. José, em Bragança. A sua alcunha de adolescente, Robespierre, com a qual chegou a assinar alguns artigos na imprensa, denuncia o comportamento revolucionário de um homem, nas suas palavras, “pouco carregado de carnes”.


Em abril de 1935, quando se jubilou, a nata da cultura nacional, incluindo as universidades e até representantes do poder político, sobem até às terras frias do nordeste transmontano para o homenagearem. Não era caso para menos: a marca da sua ação cívica, cultural e até académica em áreas que extravasavam a atividade sacerdotal ao longo de períodos de enorme conturbação social era um exemplo para o país e uma bandeira para uma região sempre longe do poder central, sempre marginal, sempre entregue a si própria e à sua “fé granítica”, na expressão pública e conhecida do bispo D. José Cordeiro, ao referir-se ao abade de Baçal.

Agora, no interior do Museu que tem o seu nome, há um travo intenso a história e a revelação pública do seu ecletismo. Foi historiador, arqueólogo e genealogista, ao mesmo tempo que cumpria na paróquia da aldeia onde nasceu a sua vocação sacerdotal.  No ambiente intimista que a iluminação ténue dos corredores empresta às salas do Museu, vislumbram-se peças com mais de um século, adquiridas em 1912, por ocasião da hasta pública dos bens da diocese de Bragança-Miranda. Destaca-se a arca dos Santos Óleos, ainda hoje utilizada em eventos da diocese, o Provocando de José Malhoa, figura de destaque do século XX, e as ilustrações de Almada Negreiros para o livro de Joaquim Manso, Fábulas.


Contando a história do espaço que ocupa dois andares, enquanto caminha pelos corredores a guiar a visita, o diretor, Amândio Felício, vai descrevendo algumas peças. Desde o período calcolítico, até à peça mais recente que desperta a atenção dos visitantes do museu: um retrato do seu fundador doado pela artista transmontana, Balbina Mendes, no ano de 2019. Um percurso marcado pelo passado da região e que, apesar das mais de 10 mil peças e documentos inventariados, somente 200 a 250 estão à disposição dos  visitantes.


O museu é um espaço para “conhecer as nossas origens e permite conhecermo-nos e projetarmo-nos no futuro”, adianta Amândio Felício. Rodeados das paredes negras de uma das salas do museu e a pouca luz (que protege as pinturas em exposição), destaca que é em 1935 – cerca de oito anos após a sua abertura oficial ao público – que acolhe a nomenclatura do seu patrono, o Abade de Baçal, depois de uma década como diretor do museu.

O “pai da nação transmontana que nasce”, nas palavras de alguns historiadores, foi um dos fundadores do Grupo dos Amigos do Museu destinado à preservação e conservação do património bragançano. Uma memória que é urgente salvaguardar, uma vez que Bragança é um dos concelhos com menor densidade populacional – em 2019, segundo dados oficiais da PORDATA, 28,6 habitantes/km2, muito abaixo da média nacional (111,5 hab./ km2) – e envelhecido, com cerca de 39,4% de idosos por 100 pessoas em idade ativa (dados reportados a 2019), embora abaixo da percentagem da região de Trás-os-Montes (50,3%).

Para Amândio Felício, é “um espaço pertencente à comunidade, onde podem encontrar uma parte significativa da sua história”. Aliás, os visitantes caminham num espaço que, na cidade, há umas décadas, chegou a funcionar como Arquivo Distrital, Guarda Nacional Republicana e até filial da Caixa Geral de Depósitos antes de ser um dos repositórios das estórias das terras transmontanas.  Para cumprir o seu propósito educacional, relembrando os motivos do seu patrono, as suas atividades culturais representam cerca de “50% do público anual”. Uma tarefa que, para Amândio Felício, pretende “fazer do museu um espaço de cidade”.


Antes da pandemia, o museu adivinhava um incremento do seu público, pois, “em 2019, notou-se um crescimento significativo do público fora da cidade”, recorda o atual diretor, no cargo desde 2018. O facto de a cidade estar localizada a cerca de 20 minutos da fronteira leva a que a massa turística seja, na sua maioria, espanhola. Contudo, “tem havido uma maior diversidade de visitantes, como franceses e brasileiros”, sendo que em 2019, segundo dados da PORDATA, o número de visitantes estrangeiros aos museus da cidade correspondia a 39 776 (o que representa uma fatia significativa: 39, 7% do número total). Um movimento turístico que tem sido condicionado pela evolução da pandemia e que, mais recentemente, com o encerramento dos espaços culturais, a 15 de janeiro, e com o decretar do confinamento, se estagnou.  

A fim de permanecer ligado à comunidade, o Museu Abade de Baçal pauta a sua atividade pela ligação a diversas instituições da capital do distrito – que, em breve, acolherá o nascimento do Museu da Língua Portuguesa, nos antigos celeiros de Bragança, único em Portugal. São Paulo, no Brasil, tem um desde 2006, mas um violento incêndio, em 2015, destruiu parcialmente o edifício e derreteu parte importante do seu espólio. 

Mas o museu do Abade de Baçal é mais que um amplo espaço de exposição de peças, quadros e de memórias de uma cultura e de um viver da região. Em parceria com o Conservatório de Música e Dança de Bragança, e como a estreita relação com o Instituto Politécnico de Bragança, nascem concertos no jardim – utilizado, por alguns estudantes, como espaço de estudo para os exames – ou atividades pedagógicas intimamente ligadas às exposições. Além dos estágios promovidos e que já trouxeram ao museu alunos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), uma das percentagens significativas de alunos no politécnico da cidade. Mais recentemente, estão a desenvolver um projeto em conjunto “a fim de tornar o museu mais acessível, não só ao público em geral, mas também aos que possuam algum tipo de necessidade especial”, adianta o diretor. Uma preocupação que se denota na entrada do museu, com as rampas e corrimões de apoio para pessoas com a mobilidade reduzida.


Um espaço que pertence aos transmontanos
Com o período de indefinição provocado pela Covid-19, “para um espaço como o museu, que tem como centro a comunicação com o público, fechar as portas é sempre trágico”, confessa o ex-coordenador do Gabinete de Extensão Cultural do Museu da Presidência da República. Assim, mantiveram apenas a atividade administrativa e a de conservação das peças, com “trabalhos de registo de temperatura e humidade”, com as portas encerradas. Apesar da reabertura a 18 de maio, Dia Internacional dos Museus, “um dia um pouco atípico, com pouca gente”, o novo confinamento geral decretou o cerrar da casa do Abade.

No verão, notaram um “aumento da circulação de pessoas, mas ainda longe dos números habituais”. Com o retorno à atividade, na estação das temperaturas altas, o futuro foi planeado com a tentativa de manutenção do “trabalho de fidelização do público, bem como o contacto permanente com as instituições e artistas da cidade”. Tratando-se de um organismo público, o museu teve a “vantagem de manter o seu orçamento”, relata o diretor. Positivamente, Amândio Felício destaca o facto de o turismo nacional, em particular, no interior, ter crescido e alguns deles serem os novos visitantes da “casa” do Abade de Baçal. Contudo, reconhece que “vai demorar muito tempo a normalizar”.


Apesar de “muito cético em relação à capacidade que os canais digitais têm para ‘substituir’ a experiência da visita do museu”, o diretor considera que as redes sociais foram fundamentais para manter o contacto com o público. Não obstante tenha coincidido com um período em que o novo site ainda não estava em funcionamento – mas que, agora, se encontra ativo.

O museu, no coração histórico da cidade, com o Castelo a alguns metros da sua porta, é um dos tesouros ‘escondidos’ do nordeste transmontano. Um espaço que bebe da estória de um abade que, uma vez por semana, percorria a pé os dez quilómetros que separam Baçal de Bragança, para cuidar do museu, que teve nomes como Raul Teixeira como seu diretor. Tal como dita a tradição transmontana e a história das gentes que o museu esconde, quando for possível, terá as suas portas abertas, “para que a comunidade volte a apropriar-se deste espaço que lhe pertence”, assegura Amândio Felício.


Catarina Magalhães

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