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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Fialho de Almeida: "Quatro Épocas"

 Por detrás da nossa casa, passado o laranjal, ficavam as oliveiras, manchando  de pardo o terreno ondulante  que uma  erva  espessa  e florida  cobria.  As  primeiras sezões que tive, por um Verão de há quarenta anos, agradeci-as aos  calores insuportáveis a que durante uma semana me expus sem chapéu, sem  véstia  e sem sapatos.  No campo, segundo o costume patriarcal da  gente  pobre, mal o sino da igreja dá o meio-dia, o pai senta-se à mesa em frente da mulher,  os filhos  à  roda,  e janta-se.  Findo o jantar,  a  família  levanta-se,  conservando o seu lugar, e cada qual põe as mãos. O pai e mãe rezam em voz  baixa,  enquanto os filhos recitam alto a  oração de graças pelo alimento  daquele dia: Muitas graças e louvores sejam dadas ao meu Senhor Jesus Cristo,  pelos muitos bens e esmolas que me faz, tem feito e tem para fazer enquanto  for servido. Padre Nosso...

Depois o chefe  abençoa  os  pequenos  e manda-os tratar da  vida;  os mais  velhos para o trabalho, os mais novos para a escola. O mestre que tive era um  relapso sem emenda.  Dia  sim,  dia  não, gazeta  sabida!  Que júbilo  o meu  quando, ao chegar com a pasta e a cantarinha de água, ouvia pelo tabuado da  escola o sapatear rebelde dos rapazes e as vozes bramiam num coro estridente  que dizia:

— Não há escola, não há escola!

Íamos em bandos depois, cantando praça abaixo, aos socos, aos empurrões e  aos berros.

Uma vida de bezerros circulava nas nossas artérias sadias; uns atiravam com  terra à cara dos outros, 'com pedras e com pastas. Alguns dos mais graciosos  arremedavam o mestre, fazendo carantonhas de estoirar de riso. Vários ainda,  dos que moravam perto, iam jogar o botão, arrancando sem piedade as marcas  das ceroulas e das calças e os botões das jaquetas e coletes. de uma vez que  apareci sem botões, a minha mãe deu-me açoites com tão áspero chinelo que  nunca mais tive vontade de jogar. Aquela sova explica porventura o asco que  ainda hoje sinto pelos jogos — tão abençoada foi ela!

Já  naquelas  idades,  que uma  alegria  embebeda de exuberantes  e  puras  fantasias,  armávamos  panelinhas  de três,  quatro  e cinco,  para  a  brincadeira. Sucedia  às vezes que  essas pequenas sociedades eram surpreendidas pelo  mestre  em pagodes reais.  Levavam todos  com a  régua  ou iam  de joelhos  todos, conforme.

A minha era composta do Chico Rato, cujo pai era feitor na nossa casa, do  Manel da Pomba, um loiro de olhos sinceros, mau como os demônios, e do  Zé Estrelo, hoje pastor.

Em dias de feriado ou de gazeio toca para o olival dançar nos baloiços, fazer  caça aos ninhos ou atirar pedra à velha aos telhados das adegas carairas.  

Duma vez apanhamos um gato que todas as noites nos ia roubar as crias dos  coelhos. Atamos-lhe um baraço ao gasnete, penduramo-lo numa oliveira e foi  pedrada até que morreu. Eu chorava de pena.  

— Oh!  minha lesma!  —  dizia  com desprezo  o Manel da  Pomba,  descarregando às três e às quatro, sobre o pobre animal meio morto.  

Mas o que mais nos  divertia  era  o baloiço.  Atávamos as arreatas das  mulas  umas nas pontas das outras; Zé Estrelo, que era o mais possante, dava laço na  perna sólida, de uma oliveira secular.

As pontas pendentes da corda eram atadas  a  uma  cortiça  rija, que servia de  assento.

E estava pronto — um! dois! três!  

Começava a frescata.  

Durante os cinco ou seis anos que serviu aos nossos prazeres, a velha árvore  nem por um instante nos traiu. A cortiça do baloiço era ocupada às vezes por  três rapazes. Quebravam-se as cordas e vínhamos ao chão; a árvore, porém,  nem nos metia susto, estalando. Boa e velha amiga que parecia feliz deixando-nos pender nos seus ramos metálicos, como esses cachos vivos de que falam as histórias maravilhosas!.. 

Uma  noite,  depois da  ceia, estando todos ainda  sentados  à  roda da  mesa, o meu pai, fazendo a voz solene, disse-me que eu estava um homem e precisava  cuidar do futuro.  Eu tinha  uma  forte admiração pelos  carpinteiros,  naquele  tempo. A arte com que eles punham branca, nova e polida uma velha tábua  com que o meu canivete  nada  podia!..  A habilidade para  tudo  ajustar e o  gosto com que arranjavam os  carros com que brincávamos, arrastando  carretadas de trigo, pelas eiras, davam-me um pasmo sem limites e um desejo  sério de lhes seguir a profissão.

—  Eu cá quero ser carpinteiro — disse eu todo grave.

Meu pai bateu na mesa, e o senhor prior, que estava presente, riu da minha  ambição.

—  Estás tolo, ou que diabo tens? — disse o meu pai de sobrolho hirsuto,  olhando-me.

—  Vais  mas é para  o colégio,  como  os  meninos  do  cirurgião  —  disse  o prior com bondade.

Eu abri os olhos sem entender, ou tremendo de entender. Ir para o colégio,  numa terra distante onde ninguém me queria, deixar o Manel da Pomba e o  Zé Estrelo, e a horta, a casa, o olival, o baloiço e a árvore amiga e tolerante?  Quê?  De cabeça  baixa,  a minha  mãe não dizia  nada.  Puxei-lhe a  saia  devagarinho, ferido de grande medo:

—  Não quero ir, mãe, não quero ir!  

Os olhos dela fecharam-se e, aos cantos das pálpebras comprimidas, lágrimas  silenciosas caíram de uma saudade que ainda hoje me entristece.

Tinha já nove anos e parti.

A lembrança que no colégio, à noite e após todo um dia de aulas que a dureza  dos prefeitos me enlutava de, amargos desalentos, me vinha mais viva, mais  inconsolável e mais triste, era a da árvore velha do olival, que sem queixa me  aturara tanto!

Bons tempos  da  infância,  purpureados  de risos e cheios do casto aroma  da  inocência — que vos não verei mais!.. 

No colégio, à medida que os anos corriam e enraizava dessas leais estimas que  servem para  toda a  vida,  as puerilidades  da  aldeia  apagavam-se-me pouco a  pouco, como lâmpadas sem óleo em templos desertos. Da segunda vez que  vim a férias, vestido como um pequeno senhor, de luvas e relógio, pareceram-me desprezíveis as minhas velhas afeições. Fui uma tarde à escola, de chapéu  na cabeça e bengalinha de junco. O mestre tratou-me por senhor e sentou-me ao seu lado,  corando da  superioridade desdenhosa  que eu mostrava.  Os  rapazes ergueram-se  respeitosamente como  se  tivesse  chegado o  comissário  dos estudos.  Aquela gentalha  de sapatos  cardados,  véstias de  saragoça  e  camisas de pano cru fez-me nojo, e tive humilhação, pensando que fora assim  também, por tanto tempo. Lá estavam nos seus bancos de pinho o Zé Estrelo, o Manel  da  Pomba e  o Rato,  de  cabelo  hirsuto,  punhos  sebentos  e livros  amachucados, olhando-me com esses grandes olhos doces que certos cães-d água fitam nos donos em os vendo a comer. Pouca gente entrara de novo na  escola. De vez em quando, o mestre batia com a régua na mesa e gritava:  

—  Ó lá do canto! Temos paulada não tarda um instante.  

A casa imunda, cheia de cuspo e papéis rasgados, era de uma nudez ignóbil.  

—  Aqui não aprendem francês? —  perguntei  eu com  uma  superioridade  que os meus dez valores na disciplina não justificavam muito

E nessa noite à  ceia, enquanto  o meu pai  olhava  para  mim num êxtase e a  ternura da minha mãe orvalhava de lágrimas o casto lenço branco que se lhe  encruzava no seio, disse passando a mão pela testa e cabelo, como via às vezes  fazer aos de Matemática no colégio:

—  Lá fui à escola fazer o meu bocado de troça.

Aos  catorze anos  estava  um  homem,  espigado  e pálido,  com as olheiras  sintomáticas da transição de idade. Era bonito e meigo, com mãos de mulher,  que veios azuis reticulavam, como em certos mármores sagrados. As gengibas  tinham-se-me descarnado um pouco, fazendo mais compridos os dentes.  

Ardia na aspiração intensa de usar cabelo crescido e fatos de casimira clara. O  uniforme negro do colégio e o cabelo à escovinha da ordem torturavam-me o  orgulho de rapazinho elegante. O meu grande desejo era ser externo, fumar e  ir ao teatro. Um, de Introdução, já crescido, caíra uma vez de um cavalo e a  queda fizera-o ídolo da rapaziada. Quem pudera gozar também de semelhante  triunfo! — pensava eu por vezes, sentindo um ciúme ardente do herói. Uma  mágica das Variedades, onde fomos todos numa noite de Carnaval, patenteou para mim o  amplo cenário  de um mundo com que o meu temperamento nervoso já  sonhara confusamente. O de Introdução emprestara-me um binóculo, o que  me permitiu observar miudamente  as decorações,  os  figurantes  e os  camarotes.  As bailarinas e os  deuses  vestidos de malha  apertada,  que lhes  desenhava  todas as linhas  dos  corpos,  fizeram-me palpitações de artérias e  securas de garganta. Havia um príncipe loiro, de uma beleza sem rival. Amei-o cá fora, anos depois, quando já perdera a frescura e subira em preço — ai de  mim! Era  uma  actrizita de dezassete anos,  boca  vermelha  e falas musicais,  vestida de rapaz. Nada mais gracioso que os seus pequenos pés ligeiros, que  pulavam ondas, rochedos, abismos e perigos — tudo de lona, é claro. A sua  cinta era fina e flexível, e as ondulações do seio cintilavam numa armadura de  galão, às escamas. Essa noite foi uma febre para mim, impetuosa, alucinada e  tremenda. Que revolta, Santo Deus! Estendido no leito do dormitório, onde  seis  ou sete  dos  meus  condiscípulos  tranquilamente dormiam,  eu  experimentava  dentro  de mim  o  que quer que era de um  desabamento.  Faltava-me o ar e tudo me andava  á  roda.  Que miserável aquela  clausura,  regulada  a  sopa, vaca,  arroz  e duas pêras verdes!  E dez horas de estudo, madrugadas peníveis, repreensões, opressões e malquerenças!. . Sim, para além  do colégio com a sua monotonia de calustros, as suas apostilas, as quintas, os  domingos de folga e a roupa lavada duas vezes por semana, outra existência  auriflamante tumultuava  em amores,  em  pompas,  em perigos  e doidas  fantasias preconcebidas e logo realizadas-,  E aquele príncipe  loiro,  aquelas  fadas azuis,  e as  aspirações  que o magnésio  idealizava  de uma  fascinação  irresistível,  viviam,  cantavam, amavam  ao seu bel-prazer assim vestidos,  lançando à  roda  o cheiro  da  carne  viva  e sadia,  que chama  os  famintos de  deleites, e faz rolar as libras dos perdulários. O candeeiro apagou-se por noite  velha. Ergui-me cautelosamente, em camisa de dormir.

—  Quem anda aí? — perguntou, com voz de porta-machado, o Carvalho,  prefeito, que fora de lanceiros.  

Aquela  voz enregelou-me,  e tornei para  trás,  como se  por mim houvesse  passado a maldição de Israel.

O de Introdução trouxe-me romances. E a leitura frutificou no campo que a  mágica das Variedades havia irrigado. A Filha do Parricida — que esplêndido! «Já  leste?»  dizia eu a  toda a  gente.  O  Filho do Diabo  fez-me sonhar.  E  os  Bastidores do Mundo, o Doutor Negro, e os Mistérios de Londres! Todo eu  era escadas de corda, alçapões, raptos, personagens mascaradas e juramentos solenes.

No quintal,  às vezes, reproduzíamos as cenas terríveis que Íamos  lendo às  escondidas. Fingindo irmos a cavalo, encontrávamo-nos num recanto da rua.  

—  Quem sois? — perguntava um.  

—  A lua romperá — respondia outro.  

—  Deixai passar,  irmãos  —  fazia  o primeiro,  e cada  qual seguia  o seu  destino.

Doutras  vezes,  ao  chá,  um  de nós  exclamava  arremessando ao  Outro  um  lenço:

—  O senhor é um cobarde!  

O insultado erguia o trapo, bramindo:  

—  Ah,  que essa  afronta só  se pode apagar com sangue.  Amanhã no  Bosque de Bolonha, às sete.

—  Lá estarei, senhor!  

E íamos dormir em seguida, com o maior sossego.  

Estes devaneios eram positivamente um estado patológico. Estávamos magros  e pálidos,  adorávamos as noites  de luar  e as inglesas  de olhos  claros e  tornozelo másculo,  que nos domingos de Inverno víamos sair da  missa  dos  Ciprestes,  loiras e frescas,  apanhando os  vestidos.  Um piano,  uma  voz  de   mulher, qualquer namoro e o menor pormenor da vida das ruas, era para nós  um tema de sentimentalidade. Suspirávamos por coisas etéreas e por aventuras  trovadorescas. Estudávamos pouco e tomávamos óleo de bacalhau e ferro em  pílulas. Aos quinze anos acabei os preparatórios, e, nas férias grandes que se  seguiram, o meu pai faleceu. Nas cidades, a morte do chefe da casa chega a ser  um episódio sem consequências mais altas que o luto da praxe e duas missas  rezadas — quando a família não fica a morrer de fome. Muda-se logo de casa  por via  de regra,  os filhos alargam a  esfera  dos seus hábitos livres,  e fazem aquisição dos  vícios  que não tinham.  Em quatro meses,  o fim de cada  membro da casa destroncada é comer alegremente as rendas que um trabalho  agro porventura acumulou, no espaço de uma existência de acérrima labuta. O  campo,  porém,  conservando muitas das virtudes  patriarcais,  dá  a  esta perda  um  caráter de fatalidade sem conciliação.  A viúva  envelhece de  lágrimas e  estiola  como uma  trepadeira  queimada;  um  dos  filhos, se  é homem,  empreende e continua a tarefa do pai, adquirindo nos hábitos, no amor e no  respeito da  família  o mesmo  grau de fervor cego e de obediência  dedicada.  Senta-se  à  cabeceira  da  mesa  nas refeições,  dirige  os  trabalhos  do campo,  recebendo as rendas, ordenando as colheitas  e levantando-se mal  o buraco  luza.  Mas o seu governo é todo nominal.  Quem ali  impera,  quem a  tudo  preside, quem julga tudo e tudo ordena, é o velho, o marido, o pai, o outro,  querido fantasma evocado a toda a hora e a propósito de tudo, cujo sudário  até vem estender-se de noite, numa alvura de nebrina, a encher de fecundante  orvalho as vegetações que ele próprio plantou. Quando o meu pai fechou os  olhos,  eu estava  bem  pouco apto a  retomar o arado que a  sua  mão  exausta  deixara  cair.  Era  franzino e branco,  de um  temperamento  irritável  à  menor  emoção,  medroso, fantasista  e  indolente,  a  quem  as duras  profissões  repugnavam como uma  vileza, e a  ideia da  vulgaridade cheia  de um  terror  supersticioso.  A minha mãe chorava  a  toda  a  hora  com dois  irmãozitos  ao  colo. A casa, silenciosa, parecia um túmulo profanado. Pobres como éramos,  se um dia não velássemos a horta e o olival, a miséria bater-nos-ia à porta. E  justamente quando ia  a  entrar na  Politécnica!..   Não sei como aquele tempo  passou. Há coisas que até em ideias são sinistras. Lembro-me que perdi o ano  e amei minha prima  Marta,  uma  loira diáfana,  que viera  para  nossa  casa, da  herdade em que nascera.

Esse amor,  que era  doce,  sincero e casto,  deu a  nota  mais alta na  escala  romântica  daquele  período da  minha vida.  Envergonho-me de o dizer,  mas  lemos Paulo  e Virgínia,  Rafael  e o Átala  em comum, ela  vestida de branco  porque eu lho pedia, eu de cabelos crescidos e grande lustro de pomadas nas  poupas.

Marta,  com a  sua  natureza  contemplativa  e triste,  propendia  àqueles  lances  patéticos da minha imaginação de colegial. Era de uma simplicidade doce e de  uma serena beleza, que os seus olhos azuis enchiam de esplendores religiosos.  Em ela olhando para mim, eu corava. Toda a minha ambição agora era fazer-me bonito  e cidadão, para  me impor  à  sua  ingenuidade.  Que Primavera  a  daquele ano! Depois do jantar íamos de braço dado através dos laranjais em flor, num tapete de campainhas, fumárias e malmequeres, ao rumor das noras e sentindo cair a água nos tanques da horta. Os meus irmãos corriam adiante, com chapéus de palha, fazendo chiar os seus carros de pinho. Nós, devagar,  sentíamos no aroma nupcial das árvores o quer que era de bênção que vinha em golfadas, sobre as nossas cabeças. E debaixo da velha oliveira secular, que já  me protegera  os brinquedos  de garoto  e  cujas ramarias  artísticas,  de tons cinzentos, abriam ao sol o seu toldo amigo, o nosso amor eflorescia tranquilo, como se de cima o olhasse, das folhas e dos ramos, o bom Deus de bondade com que os pequeninos sonham a sorrir.

Aos vinte anos o meu espírito sofrera mais uma transformação. Criara amor  pelo estudo e sentira a necessidade de um ponto de vista em ciência, que lhe  permitisse sugar dos seus ásperos labores um certo número de noções práticas  para  a  vida de  cada  dia.  O  curso de  ciências naturais  conseguiu destruir  o  mundo romanesco e labiríntico que eu idolatrava  em arte,  dando-me certo  gosto  afinal  pelos estudos  de observação.  Comecei  por  queimar todos os  romances inverossímeis dos Srs. Terrail, Reynolds, Féval, Montépin e Zaccone. Depois executei  os  Srs.  Feuillet e Feydeau;  em seguida  fui-me aos  poetas e  vendi-os a oitenta réis o volume — por escárnio. Nas férias herborizava com um  amor de que um  ano antes me julgaria  incapaz;  partia  de manhãzinha  levando os cadernos de dissecação na bolsa de caça, e um estojo de tubos de  vidro, munido de compridos alfinetes no bolso — para as coleções de insetos. Ao cair da noite voltava com duas perdizes à cinta e alguns coelhos, os tubos  cheios dos coleópteros caçados, uma multidão de plantas curiosas esmagadas  no álbum.

Minha mãe, que não compreendia o meu interesse pelos bichitos, muita vez  me olhava surpresa, vendo-me estar horas esquecidas com um áptero no alvo  de um microscópio de Raspail, que eu adquirira no leilão de um classificador.  Como se ergue lentamente o estore colorido de uma janela, através de que um  panorama vivo  se enxerga,  assim os estudos  de análise  erguiam  de sobre o  meu cérebro as fantasias bizarras e piegas,  permitindo-me palpar e  surpreender a  natureza  no drama da  sua  gestação colossal.  Longe de me  dissecarem as faculdades criadoras e as aspirações  saltitantes  da  imaginação,  aqueles trabalhos  minuciosos, pacientes  e  nem sempre coroados  de êxito,  davam-me às vezes conceções delicadas, de larga elegância artística. Adquiri na  frase uma precisão incisiva, de pensador.  

E cheguei  a classificar um  homem ao  primeiro  golpe de  vista, como  fazia a  um  inseto  posto no foco de  uma  bela lente  de  crown-glass. A aridez das  primeiras tentativas não me arrastou a  essa  tristeza  morna  e aborrecida de  certos padecentes  de dispepsias  crônicas.  Por  esse  tempo era  eu  um  grand  gaillard  vermelho  e forte,  com mãos  sólidas e  afeitas indiferentemente  às  argolas do trapézio, ao cabo da enxada e aos escalpelos do anfiteatro. Comia,  como vulgarmente se diz, como um alarve, tinha o sangue vivo e sadio, casto  além disso.  A residência  no campo, após  a  morte do meu pai,  operara  a  metamorfose  do indivíduo anêmico,  seco e propenso  aos  delírios da  imaginação  voluptuosa, no útil primata  de  sangue  quente e respiração  pulmonar, capaz de derrubar a Sé com um soco e ser levado à morte pela mão  de uma criança. A reclusão dos livros reporta o homem a uma simplicidade  doce  e austera  de hábitos e emoções,  e fá-lo  bom,  depois de o  haver feito  grande.

Nenhum tônico mais eficaz à saúde do espírito que a saúde do corpo. Uma  enformatura de atleta tem de ordinário um rouxinol por alma. De forma que  eu sentia a bondade extravasar de mim como nos tempos bíblicos o óleo de  nafta  da  urna  da  santa mulher,  que ajoelhada ungia  os pés de Jesus.  Os  violentos  exercícios  em que o esforço muscular se despende,  a  carreira,  a  ginástica e a caça, faziam a minha paixão, dando-me o culto da minha própria  forma. Erguia verticalmente os dois braços, tendo em cada mão sentado um  dos meus irmãozitos — coisa que assombrava o Zé Rato e fazia contentes os  garotos. Diante dos grandes espetáculos em que a natureza expende a mãos  plenas o jogo ícaro das suas forças harmônicas, a minha alma tinha frêmitos  de asas como as andorinhas que vão atravessar o oceano. A vacilação fatalista  do  período  lamartiniano  fora  substituída  por  uma  compreensão  lógica dos  fatos, por uma tranquilidade honrada à ideia do futuro e pelo testemunho da  mais sã consciência. Entrei afazer religião do trabalho, o que me permitiu não  pensar mais em Deus, tendo-o sempre no  coração.  As mulheres eram concordes em que a  minha beleza era  superior  à  minha amabilidade.  Uma  senhora achou-me uma noite a conversação de um lente. E algumas diziam de mim «Pretensioso!» —  porque lhes  não falava  das locais amorosas e  das  revistas de modas.  

Compreende-se que o meu entusiasmo puritano por tudo quanto era grande  não sobrasse para o espartilho das sirigaitas que se me agitavam no caminho.  

Assim modificado, tinha agora o mais completo desprendimento pelo que se  chama  gozar.  Apagara-se-me o ideal  pelintra  de  muito  folhetinista imberbe,  que consiste em ser cumprimentado à porta da Havanesa por três burgueses  que passem, mostrar todos os Invernos três pares de calças novas sobre dois  de botas velhas, e um plastron vistoso num seio tuberculado.

A ostentação e a exterioridade enfastiavam-me como certos cheiros de ácidos  vegetais. Odiava em geral o ruído e o luxo, não achando digna de um homem  sério qualquer das lânguidas que nos  passeios e nos teatros via  desfilarem,  monótonas e sorvadas,  por  diante de mim.  No seio dos  meus  papéis  ou na intimidade flagrante da natureza em festa, sentia-me outro homem, respirando  saudavelmente e digerindo às mil maravilhas; uma alegria penetrava-me, com  essa  intoxicação anódina  do gás  hilariante,  nos organismos  nervosos,  e eu  crescia  e revigorava,  sentindo a  vida como um  beneficio  sem  preço.  Foi  durante  esse tempo,  o mais laborioso,  o mais infatigável,  o mais  útil e  o  melhor de toda a minha vida, que pude realizar as coleções de insetos que hoje  pertencem à  Escola  Politécnica  e me valeram os  emboras dos grandes  trabalhadores da Europa, e estudar quase completamente a flora continental  que Brotero deixara  lacunosa.  Nestes  trabalhos  depurara-se  minha  sensibilidade ao extremo de me comover perante uma bela árvore ou ao cabo  do estudo de qualquer complicado coleóptero. Um indivíduo vegetal cativara  o meu amor ardente, apaixonado e ingênuo. Era ainda a oliveira que desde a  infância  me oferecia  a  sua  sombra  benéfica,  a  sua  ramaria  frondente e a  enorme corpulência secular do seu tronco. Que grandeza, a desse gigante, que  uma espécie de bondade envolvia e divinizava!...

Aos cinquenta anos tinha os cabelos brancos e a pele rugosa. A minha mulher,  de compleição doentia, dera-me filhos sem saúde e de sensibilidade estranha.  Eram pequenos  pálidos,  de grandes olhos  ardentes,  mãos  febris,  frágeis e  curiosos, cujo futuro me fazia tremer.

Estava cansado e velho. Toda a vida sentira pelo dinheiro um desprezo sem  limites, não lhe dando a honra sequer de o acumular. Perdera a vista do olho  direito, aos trabalhos do microscópio. Era mais pobre que no tempo do meu  pai — tinha apenas do meu o olival. Para economizar, dirigia eu mesmo os  trabalhos  do campo e andava  vestido de saragoça.  Às vezes,  vinha-me o  remorso de não ter alcançado uma fortuna para essas pobres crianças, que a  perpétua contemplação do mesmo  panorama parecia  enlutar de  melancolias  negras e de pressentimentos funestos. Pouco a pouco, à medida que os anos  me polvilharam de  neve  os cabelos,  ia  experimentando  uma  irritação  surda  pelo meu passado laborioso,  mas  estéril,  dessa  coisa  vil  e preciosa  chamada  moeda.  Não  tinha senão despesas;  lucros,  raros!  Então reneguei  da  heroica  abnegação de  outros  tempos, tornando-me  vulgar,  macambúzio  e cheio  de  admiração pelos lavradores opulentos da vizinhança, que recolhiam vinho às  adegas  e trigo aos celeiros.  Os filhos  deles  espezinhariam talvez  um  dia  os  meus filhos, vingando a imbecilidade dos pais da orgulhosa superioridade com  que eu os  tratara.  Os filhos deles  seriam felizes,  cheios  de  confortos  e  prazeres,  com a  faculdade de estudarem onde bem quisessem, e de fazerem  fortuna  como  bem lhes  parecesse.  E os  meus,  mal  enroupados, doentios  e  invejosos — quem sabe se, conhecendo um dia a minha história, maldiriam a  intransigência do meu caráter e a pouca solicitude com que lhes tratara dos  interesses!

Os meus dias então eram levados em percorrer o olival, no cálculo dos litros  de azeite que me renderia a colheita..  Que desalento aquele meu! As árvores  não carregavam todos os anos: enchia-as de pragas, e maldizia a minha vida.  

A oliveira secular somente, compreendendo a minha situação e adivinhando a  angústia  daqueles  passeios solitários,  procurava  com frutos  abundantes  compensar o modesto tributo que as outras árvores  tão custosamente  me  pagavam.  Fora  para  mim a  eterna  mãe afetuosa,  de cujos ramos  pendera  criança; a benévola confidente que cobrira do seu dossel de folhagens o meu  amor por Marta, o esplêndido e vitorioso vegetal diante de que o meu êxtase  de botânico tantas e tamanhas vezes tinha exultado. O amor que eu lhe votara  sofrera as quatro fases de todos os amores da vida humana, em transigência  sempre com a  orientação do  caráter e com o progredir dos  anos.  Fora,  primeiro, o amor de criança incoerente e doido; fora, mais tarde, o amor de  adolescente,  idealista  e rêveur, representativo  da  idade em que  o homem  desagrega da alma as crenças inocentes e começa a participar da influência dos  primeiros instintos  másculos.  Transfeito  no amor de sábio  elevaram-me até  regiões altívolas.  —  Depois,  no Inverno  da  vida,  aquela emoção arcangélica  primeiro,  impregnada de poesia  radiosa  depois,  e tornada  sublime por fim,  decaíra  no  vil  egoísmo,  que mais prefere  aquilo que mais rende,  impressão  sem grandeza  e sem ideal,  derradeira  eflorescência  da  alma  obcecada  pelos  interesses, pelas amarguras e pelas opressões! 

Fialho de Almeida - Contos (1881)

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