“Quem celebra a grandeza das cidades não sabe nada, não sabe que quando um galo canta em Barca d’ Alva é ouvido em três distritos e dois países.”
A tia Claudina aguentou-se na cidade a muito custo, vivendo num susto permanente, ora nos períodos de conturbação social, ora nos períodos de acalmia, que adivinhava de curta duração.
Era sempre cheia de medo que se aventurava a ir sozinha às ruas principais, regressava apavorada com as notícias dos jornais sobre a Grande Guerra.
Só pela insistência das cunhadas, ia com elas passear na Rua Augusta, no Rossio, no Chiado e fazer compras, ou assistir a espectáculos de teatro e cinema. Se isso não fosse, teria vivido enclausurada, cuidando dos sobrinhos, sem nada usufruir da vida citadina. O seu íntimo desejo era regressar à sua aldeia onde se andava pelas ruas em sossego, e não havia jornais a levar diariamente a população para os campos de batalha pela Europa toda.
Na aldeia não havia racionamento de bens essenciais. As colheitas dependiam do sol e da chuva no tempo certo. Era esse o único regulador: a clemência da natureza e não o desígnio dos homens. Assim, o cereal amadurecia nas espigas ao ritmo de sempre, o malho ritmado separava a palha do grão, a água movia os moinhos na repetição do movimento, em cada forno a massa levedada entrava e saía sobre a pá que a mulher manejava num vaivém ancestral. E o cheiro do pão acabado de cozer espalhava a notícia do alimento sagrado. (…) Finalmente, Claudina entrou no comboio rumo ao Norte com as malas de roupa e as caixas de chapéus. Foi no Porto, ao embarcar na Linha do Douro, que a estranheza com que a olhavam lhe deu a consciência de regressar outra, diferente da que partira. Na primeira classe, era a única senhora com o vestido dez centímetros acima do tornozelo, meias de seda em tom bege, sapatos de biqueira arredondada, de salto alto confortável com tira e fivela; cabelo cortado e chapéu apequenado com vistoso adereço brilhante. Sentiu- se o alvo da atenção, sobretudo das senhoras que, nas suas indumentárias antigas, a iam inspeccionando em olhares furtivos. (…) O comboio avançava serenamente na margem do Douro onde os vinhedos replantados alternavam ainda com extensas áreas abandonadas. Mas quando se embrenharam na rudeza da paisagem vizinha de Espanha, Claudina guardou o livro, disposta a apreciar os montes, os desfiladeiros abruptos que as pontes ferroviárias transpunham, as aves que planavam no alto e sentia-se de novo filha daquela terra agreste, daquele rio aprisionado pelas margens. Esqueceu o figurino estrangeiro das roupas que a cobriam. (…)
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