sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Casca seca de Laranja

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Há certas coisas na vida que desde criança me fascinam e sendo coisas banais mais insólito se torna explicar a terceiros as razões profundas para tal.
Havia em casa dos meus pais um quintal que do lado esquerdo tinha um muro de alvenaria que suportava a força da rua de terra que marginava a linha do caminho de ferro que ali passava para gáudio da garotada que tocava a charanga à passagem do "misto" ofegante e lento em direção à Estação da CP que ficava logo a seguir à Moagem Mariano. O muro tinha uma particularidade interessante, não fora rebocado e mantinha reentrâncias pequenas mas suficientemente grande para nós, criançada, que escondíamos lá toda a sorte de bugigangas, como: berlindes e esferas, paus redondos e bem raspados para a prática do jogo do berlinde, conchas, que guardávamos para fazermos Colares e tudo que era minimamente capaz de caber no bolso e no buraco da parede.
Era um muro insólito aquele pois que como uma estante mantinha enxuto e a recato as miudezas da nossa modéstia de haveres.
Tinha este muro outra vocação que lhe advinha do facto de estar voltado a Oriente e que desde bem cedo, aos primeiros alvores do Sol Nascente até por volta das 3:00 da tarde quando se iniciava a curva descendente do astro em direção a Poente, banhava de luz o muro que nos devolvia um calor que a pedra assimilava facilmente devido ao Sol que sempre cumpria a missão eterna de nascer com o lusco-fusco e se pôr com o Ocaso.
Quando era tempo de São Lázaro a casa enchia -se de laranjas que a minha mãe comprava a granel e a casca que sobejava após as descascarmos era colocada nos buracos da parede para secar ao sol e logo que ela estava bem seca ela retirava-a pois que já o processo de secagem estava completo, podendo usar-se para dar paladar ao arroz doce. 
Nesse tempo os bolos de Aniversário estavam reservados para outra gente que não para nós e a celebração do dia de anos tinha como que o desígnio de nos fazer felizes com o jantar do dia e no final fechava-se com uma travessa de arroz doce que sabia a Laranja das do Algarve, pois durante a confeção se lhe adicionava a casca que o muro guardava e expunha ao sol para secar.
Não me imagino a relembrar o muro sem as cascas de Laranja a secar ao sol.
Quando o leite fervia e o arroz estava cozido era esvaziado para uma travessa grande e uns minutos depois, quando era já frio suficientemente, começava a arte mágica de escrever o nome do Aniversariante com capricho em que as letras fossem perfeitas e a decoração floral fosse condizente. Com mãos hábeis metia-se a canela entre os dedos e deixava-se entre o polegar e o indicador e fazia-se deslizar na vertical ao jeito de que a primeira letra fosse a que garantia uma estética perfeita na decoração que era imperativo agradasse a todos. Algumas vezes metia-se em tigelas e a decoração variava com quadrículas ou losangos que também dava gosto ver.
Mais tarde no tempo em que terminei a Escola fui trabalhar para a Pastelaria Ribeiro onde de quando em vez aparecia uma encomenda de um bolo de Aniversário, e paulatinamente o povo passou a deixar o arroz doce e passou a usar-se o bolo de Aniversário que eu próprio confecionei aos milhares durante a minha  vida, que não para mim.
E agora velho e acabado ainda peço à minha mulher que faça uma travessa de arroz doce em que ponha uma casca de laranja seca para melhorar o paladar e nessa hora é certo recordar-me do velho muro onde escondia as minhas peças e a minha mãe secava as cascas de laranja para fazer arroz doce.



Gaia 07/10/2021
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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