- Quanto devemos, Sr. José? – questionou Madalena.
- Oh, Menina: cinco metros, cinco beijos! – e o rosto, todo ele se iluminava, esperando com sofreguidão o mais almejado pagamento.
Madalena, que de parva nada tinha, fitou a avó penetrando-lhe no fundo do olhar onde se deteve por breves instantes - à procura da resposta certa -, ajeitou o semblante revestindo-se com um ar sério e determinado, voltou-se para José Benedito e respondeu
- Sr. José: quem paga é a minha avó.
Escusado será dizer que saíram da loja com risinhos finos, que entretanto iam subindo de tom à medida que se afastavam. Enquanto isso, José Benedito dava o dia por perdido. Nem beijos, nem o custo do tecido.
Todos os anos, após ter completado dezoito anos de idade, Iriberto ia conversar com o tio Alfredo para que lhe desse um ordenado pelos seus serviços. E todos os anos era-lhe dito o mesmo – este ano não pode ser; talvez no próximo ano; bem te chega as gorjetas que recebes. Entristecido tocava em retirada, envolto numa nuvem de desilusão. Não sabendo mais o que fazer, encolhia os ombros face a tão triste sorte.
Foi amealhando as gorjetas que recebia - porque ordenado nem vê-lo -, e quando completou vinte e um anos, despediu-se dos tios e de Mirandela. Rumou a Torre de Dona Chama, para montar uma oficina de motas e bicicletas. Mas o dinheiro não suficiente para tal empreitada. Foi ter com o feitor da quinta das Múrias, que conhecia, a quem lhe pediu que ficasse como fiador num empréstimo de dez contos de reis, que ia pedir ao Banco em Mirandela. Conseguiu os seus intentos, embora os juros bancários lhe tivessem saído caros. Só recebeu nove contos de reis; o resto ficou o Banco com ele. Quanto ao fiador?! Passou a ter consertos de graça e tudo quanto precisasse da oficina.
Mas as gentes da Torre não ficaram nada contentes com a vinda do Iriberto para a sua terra natal. Resolveram fazer um abaixo-assinado para correrem com ele. Não conseguiram e o resultado foi dar-lhe ainda mais força para se agarrar ao negócio.
Além da oficina, nos fins de semana ia de motorizada, gerador elétrico e gira-discos fazer festas e bailaricos pelas aldeias. Sempre que lhe era possível, comprava as últimas novidades em discos para pasmar e alegrar a mocidade das aldeias. Que maravilha ver toda a gente feliz e o Iriberto ia sendo cada vez mais conhecido pelos seus préstimos e simpatia.
Chegou o mês de Agosto e em Falgueiras, aldeia da freguesia de Ervedosa, Vinhais, tudo se engalanou para a festa em honra de Santa Luzia; e a comissão de festas resolveu chamar o Iriberto para ir animar o bailarico. E assim foi. Terminada a missa e a procissão - com os andores divinamente enfeitados -, pelas principais ruas, foi o povo consolar-se com o almoço melhorado. Vinha gente de todos os lados a esta festa. Santa Luzia é a padroeira da visão e muita gente lhe vinha pedir milagres.
Os forasteiros traziam farnéis e comiam arrimados a qualquer sombra. Embora a aldeia ficasse na serra, o mês de Agosto era danado por estas bandas transmontanas - um braseiro de meter respeito. Mais lá para a tardinha, entrava o Iriberto em funções. Punha a música a tocar e era um regalo ver a mocidade a bailar. As mães, sempre de olho nas raparigas, não permitiam aconchegos na dança. Mas os rapazes lá iam tentando a sua sorte com as moças.
Firmino, que há muito andava embeiçado pela Rosa Maria, esperou pela festa para ver se a moça lhe dava créditos para uma dança. Depois… Depois logo se via. E vai de se chegar ao pé da ti Olema, mãe da Rosa Maria, pedindo-lhe com todo o respeito se podia dançar com a filha. A senhora anuiu e retorquiu:
– Cuidadinho rapaz! Não ponhas o pé em ramo verde. Dancem afastados. Não quero ver a pequena, tão nova e já falada no povo.
Firmino prometeu guardar respeito à Rosa Maria e à senhora sua mãe. Afastaram-se para o meio do baile e dançaram conforme cada um sabia. Enquanto iam ganhando jeito nos paços da dança, e se sentiam mais à vontade, começaram a trocar tímidas palavras, para contentamento do Firmino. Não sei o que mais vibrava neste humilde rapaz, se a música ou o coração, que mais parecia um comboio pronto a descarrilar! Estava apaixonado pela moça. Aqueles olhos explodiam de alegria num brilho cintilante; o rosto, todo ele se iluminava num sorriso contagiante; as mãos suadas – que bem podia ser do calor, mas não era a única razão -, era a ansiedade da espera por aquele momento a sobrepor-se a tudo. Dançaram, uma e outra moda, sempre mantendo a devida distância, embora o que mais lhe apetecesse era enrolar Rosa Maria num abraço e beijá-la sofregamente como se não houvesse amanhã. A prudência aconselhava-o a ir com calma; não podia deitar tudo a perder. Beijava-a com o olhar quando seus olhos se entrelaçavam. Mas Rosa Maria desviava-os, timidamente, para a seguir voltar, sorrindo-lhe com seus olhos azuis da cor do céu. As palavras que balbuciavam nada diziam de concreto; os olhos diziam tudo. Não se deixaram em todo o baile, que se prolongou pela noite dentro. De quando em vez, iam sentar-se ao pé da ti Olema que trocava umas palavras com eles.
Tudo decorria nos conformes, até que apareceu, por lá, um sujeito com dois copos a mais, que resolveu armar alarido.
Começou por dizer, em alta voz, que estava ali um patife, que lhe tinha roubado a namorada. E nisto a conversa começou a subir de tom, sem que ele se dirigisse a ninguém em particular. O povo fez silêncio para escutar as razões do Inácio. Era bom rapaz, trabalhador, educado e não era costume meter-se em confusões. Se estava naquele estado, alguma coisa se havia de ter passado.
Até que alguém foi avisar o Senhor Padre, para pôr termo à situação. De pronto deu comparência para impor ordem ao seu rebanho. Pegou no braço do Inácio e conduziu-o à sacristia.
- Senta-te aí, Inácio. Que é que se passa, rapaz, para me virem incomodar, quando estava tão consolado a comer o cabrito que a minha irmã assou no forno… ai a minha irmã, meu Deus… é Deus no céu e ela na terra. Se os dois me faltam, sou um homem perdido. Mas vamos lá saber o que te pôs nesse estado. Contas-me tu ou é preciso chamar alguém?
- Oh, Senhor Padre, isto são coisas do coração.
- Que coisas? Desembucha, rapaz?
- Olhe, gosto da Rosa Maria. Cheguei aqui ao baile e não é que a vejo a bailar com o Firmino?
- Sim. Mas a mãe estava lá a tomar conta dela. E depois?
- E depois… é que eu ando para aqui todo perdido por ela, e dou de caras com ela nos braços do Firmino.
- Mas vocês têm o namoro firmado? Já a pediste em namoro ao pai dela?
- Pedir… não pedi. A coragem ainda não me chegou.
- Então do que é que reclamas, rapaz?
- Reclamo que gosto mais dela do que da minha própria vida. Até vendia a parelha de burros, a carroça, as ovelhas a olga e comprava um automóvel para oferecer ao pai dela se me deixasse casar com ela.
- Tem lá juízo, rapaz. O amor não se compra. Faltou-te a coragem para ires falar com o pai dela; bebeste mais do que a conta; e agora armaste este espetáculo. Queres um conselho? Esquece a Rosa Maria. Depois disto, nem o pai, nem a mãe, nem ela te querem. Vai para casa, sem abrires mais a boca, e deixa que o povo logo se esquece do ocorrido.
E assim fez. Rumou direitinho – isto é, conforme as pernas lho permitiam – até casa.
O baile continuou até bem tarde. Quando deram a festa por encerrada - com a largada de fogo-de-artifício para gaudio de todos que esperavam por este momento -, o povo recolheu às suas casas; os forasteiros foram embora; e o Iriberto arrecadou a aparelhagem sonora para ir embora.
Pôs a mota a trabalhar e rumou até Torre de Dona Chama. Pelo caminho, ali pelos lados de Vila Nova da Rainha, a mota deixou de trabalhar.
- Só me faltava mais esta! – dizia o Iriberto aborrecido e muito cansado da festa.
Tentou ver e rever o que seria a avaria, mas sem sucesso. Como era bastante tarde, não podia ficar ali desamparado. Resolveu bater a uma porta para pedir ajuda. Saiu de lá ti Zé António, que prontamente resolveu a questão – em abono da verdade… a lonjura não era muita, mas o carrego não era para brincadeiras.
E eis que apareceu na Torre, o bom do Iriberto, neste cenário – um burro puxando a mota e o equipamento do baile e o Iriberto completamente derreado.
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