sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

O EXAME DA QUARTA

Por: José Mário Leite
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
 
A primeira, segunda e terceira classes tinham prova no final do ano. A cópia, o ditado, a redação e a resolução de problemas eram primorosamente executados numa folha de trinta e cinco linhas dobrada na borda esquerda. Era nessa borda que a examinadora (eram raros os professores primários) colocava a classificação e o veredito final da passagem ou reprovação. Começava de manhãzinha, todos os alunos muito arranjadinhos, alguns estreavam fatiota nova e, a meio da tarde, sabidos os resultados era altura de festejar com laranjada e bolachas de baunilha.
Na quarta havia exame.
Era um marco e, como tal, a preparação era maior bem como toda a envolvente a começar pela fatiota. As meninas faziam tranças e caracóis e enfeitavam-se com rendas e laços. A validação do conhecimento e aptidão era feita em Moncorvo e também isso contribuía para dar maior solenidade ao acontecimento.
Agora acabou!
Sei bem que desse tempo, a par de boas recordações há, sem dúvida, erros e defeitos que urgia modificar e remediar. Não só pelo que já na altura estava já errado como pelo que o tempo tornou obsoleto e anacrónico. A terrível palmatória e as restantes e humilhantes punições físicas e morais há muito que deveriam ter sido erradicadas. Numa época de calculadoras e computadores não se justificará, por certo, a memorização mecânica e repetitiva da tabuada e outras papagueações sobejamente conhecidas. Mas não me é fácil entender que nessa revoada vá, por arrasto, a exigência de rigor, qualidade e esforço cognitivo. Que tem, suponho eu, que ser devidamente medido e certificado. É bom notar que entre o oito e o oitenta existe uma enorme gama de variantes e gradações possíveis.
Sem dúvida que é bom que os alunos se sintam bem na escola e que nela sejam felizes. Mas esse desiderato não pode impedir tudo o resto e tudo o resto é muito e muito importante. A escola é a fábrica dos profissionais do futuro. Aos que hoje clamam pelo fim dos exames de forma generalizada gostaria de os convidar a refletir comigo:
- É natural que um médico que tenha sido um aluno feliz, me atenda melhor no seu consultório, mas eu prefiro que ele tenha aprendido adequadamente as ciências da natureza e da vida e que essa aprendizagem tenha sido certificada!
- Igualmente será simpático ser atendido por um mecânico com um percurso escolar agradável, mas eu quero confiar a reparação dos travões do meu carro a quem tenha aprendido e saiba aplicar as leis fundamentais da mecânica.
- Por mais atencioso que o funcionário bancário seja, não prescindo da garantia que ele sabe somar adequadamente, antes de lhe entregar as minhas pequenas economias.
- Não duvido que um piloto de avião possa melhorar o ambiente a bordo se o percurso escolar tiver sido cumprido com agrado, mas dificilmente entraria numa aeronave em que o seu condutor para além de conhecer minimamente a geografia do planeta saiba distinguir bem os graus do ângulo de ataque aerodinâmico, dos graus da temperatura exterior à cabine de pilotagem e da graduação do vinho servido a bordo.
Custa-me a crer que haja quem pense de outra forma!

José Mário Leite
, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia) e A Morte de Germano Trancoso (Romance), Canto d'Encantos (Contos) tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.

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