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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Dieta Mediterrânica e Capitalismo XXI, as duas faces de Janus

 
A Dieta Mediterrânica é uma apelação inspiradora e um conceito multifacetado, que atravessa uma região em toda a sua extensão, do património imaterial como representação simbólica até ao património material natural como suporte da dieta mediterrânica. É preciso, pois, perceber que não se trata de duas realidades distintas, mas de duas faces da mesma realidade e que preservar o património imaterial equivale a conservar e desenvolver o património material natural.

A Dieta Mediterrânica, como marca UNESCO, é uma promessa de futuro e a expressão cultural e simbólica de um equilíbrio delicado entre a natureza e a atividade humana, que o tempo porfiou e o homem confiou. No cerne da questão, em nome do progresso social e do progresso tecnológico, temos o equilíbrio delicado entre eficiência e sustentabilidade, entre a monotonia biofísica das monoculturas mais ou menos intensivas e a preservação da biodiversidade natural e da diversidade social, todas elas as diversas facetas de um mesmo problema. Dito de outro modo, a cada velocidade ou intensidade a sua cultura. Ora, a Dieta Mediterrânica precisa, com muita urgência, de um plano de preservação que a proteja dos riscos morais e dos caçadores furtivos, pois há sempre alguém disposta a sacrificá-la no altar da hipervelocidade e do consumo indiscriminado.

O que é relevante é que nesta política da velocidade o homem e a natureza estão juntos na mesma luta porque correm o risco de serem, ambos, produzidos, isto é, correm o risco de ser o produto e o fruto de uma biopolítica. A intermediação é, cada vez mais, feita pela tecnologia que é uma forma de relação do capital com as pessoas, a natureza e o território. A tecnologia é uma relação de poder que configura as sociabilidades e a produção biopolítica, isto é, a produção do sujeito e da natureza. Assim, o uso das biotecnologias e das nanotecnologias determina as relações de sociabilidade e a natureza da produção biopolítica, bem como a relação de poder face à natureza.

A manipulação genética, por exemplo, faz parte desta política da velocidade e intensidade e é uma boa ilustração desta produção biopolítica. Isto quer dizer que, por intermédio de tecnologias, fármacos e alimentos, podem ser definidos novos padrões de agrupamento social e estilos de vida. Na retórica do poder biopolítico, biotec e nanotec podem simbolizar objetividade, certeza e verdade científica. As inovações biotec e nanotec podem determinar o ritmo da vida, a indústria da vida e o mercado da saúde e dos alimentos. A vida passa a ser produzida, deixa de ser simples reprodução para passar a ser, em maior ou menor extensão, um modelo de negócio.

Depois da biopolítica do século XX – limpeza, higiene, rastreabilidade e certificação – a engenharia genética e a biotecnologia molecular, as terapias genéticas, mas, também, os alimentos nutricêuticos, a bioética e os novos códigos da vida, adquirem uma condição política da maior relevância que precisa de ser devidamente temperada e reequilibrada. Esta é, também, a razão pela qual a dieta mediterrânica precisa de ser lida, interpretada e realizada como a outra face da moeda, como uma verdadeira curadoria do território e da natureza que o informa, em nome da sustentabilidade e segurança dos sistemas agroalimentares de base local e regional onde se inscreve a dieta mediterrânica.

A grande aliança do futuro ou, se quisermos, o grande risco global do futuro, é esta ligação perigosa entre biopoder e biopolítica. Com efeito, esta santa aliança entre biopolítica e biopoder é a grande oportunidade do capitalismo XXI, tendo em vista que a expansão do capitalismo, por causa da globalização e por falta de exterior, é hoje mais intensivo do que extensivo. O capitalismo financeiro tornou-se rentista e especulador e já não há praticamente santuários ou regiões sagradas. Tudo é transformado em capital, em ativos, a começar no ambiente e a terminar na vida humana. Tudo deve trocado, comprado e vendido em nome do bezerro de oiro do capitalismo financeiro. Cuidado, pois, com a diversidade de biologias de acordo com diferentes programas de investigação, cuidado, pois, com a domesticação de plantas e animais, cuidado, pois, com a fabricação da vida por via de alimentos, fármacos e intervenções diversas. Cuidado, também, com os excessos discursivos em redor da noção de sustentabilidade e a proliferação de inúmeras métricas em redor da sustentabilidade fraca e da sustentabilidade forte.

Neste contexto, qual é o lugar da dieta mediterrânica? Uma presa fácil da política de velocidade e das tecnologias de substituição, um local de refúgio para os mais avisados ou um estilo de vida e um padrão alimentar geralmente aceites pela população? Escapará a dieta mediterrânica à política de normalização do capitalismo atual que visa transformar-nos a todos numa espécie de consumidores normalizados do sistema capitalista em modo monocultura, sendo que a dieta mediterrânica pode, neste contexto, ser capturada e emergir como mais uma oportunidade de negócio interessante?

Nesta luta pela sobrevivência, a dieta mediterrânica pode já estar, sem o saber, em rota de colisão com o capitalismo regional. Ela é uma espécie de contra racionalidade, uma intrusa, em luta muito desigual contra o regime estabelecido que, entretanto, aproveita para fazer o elogio público de uma nova promessa de desenvolvimento regional. A atribuição desta apelação internacional pela UNESCO é um desafio interessante para a sociologia política local e regional e, nesse sentido, ninguém aprovaria que a dieta mediterrânica fosse conhecida como a história de uma captura e de uma enorme dissimulação, por mais sucesso e brilhantismo de que a operação fosse coroada. Resta, então, a possibilidade que todos aguardam, a saber, a dieta mediterrânica como o exemplo eloquente de uma produção social de qualidade e um estilo de vida, que melhora o bem-estar material das populações locais e valoriza o património material e o capital natural em que assenta, justificando, dessa forma, a apelação internacional que lhe foi concedida.

Se a dieta mediterrânica, pelo valor potencial que encerra, é uma promessa de futuro, então a nossa pergunta de partida é a seguinte: como fazer a conversão de uma expectativa positiva, a Dieta Mediterrânica, num processo participativo de sucesso e numa produção social de qualidade e como operar essa conversão através de uma cadeia de valor que liga um património imaterial da Humanidade a um património material regional e a um estilo de vida, de tal modo que pode transformar de forma significativa a estrutura económica, social e empresarial de uma comunidade ou região?

Sabemos que a produção de qualidade não existe em abstrato e duas abordagens são possíveis. Na primeira, o mercado “sabe” melhor do que ninguém o que o cliente precisa. Mercado e cliente, duas noções abstratas ao serviço de uma ideologia da qualidade. Na segunda, a qualidade é um atributo que pode ser negociado por sucessivas convenções ou regras de procedimento, desde a produção até o consumo e num processo interativo e negocial em que estão implicados diversos atores com estratégias diferentes. O que se pretende é que a qualidade passe a ser o resultado de um consenso social e de um processo de aprendizagem com implicações políticas e organizacionais, no sentido em que existem e são reconhecidos diversos modos alternativos de produzir socialmente qualidade.

Sabemos que a economia de mercado, ela própria, usa inúmeras convenções ou regras, desde as normas técnicas às marcas e certificações, já para não falar do próprio mecanismo de preços. Também sabemos que estas regras e procedimentos convencionais já não são suficientes para assegurar a qualidade e a tranquilidade dos consumidores. A pergunta que se impõe é a seguinte: pode a Dieta Mediterrânica estar na origem de um inovador sistema produtivo local, de um território-rede de alto valor acrescentado com base em mercados de proximidade, circuitos curtos e bens comuns, mas, também, em relações interpessoais e nos valores e princípios de uma economia de base comunitária? Ou, ainda, pode a Dieta Mediterrânica estar na origem de um contra ou alter-movimento local e regional que alargue o campo de possibilidades do território e estenda a produção social de qualidade para outras áreas de produção e consumo que até aí estavam quase blindadas pela ordem local do capitalismo dominante?

Notas Finais

A nossa resposta a estas perguntas é positiva e aquilo que podemos dizer neste momento é que o caminho faz-se caminhando e que a dieta mediterrânica dá passos seguros nessa direção. Na sociedade da informação e do conhecimento em que vivemos este é seguramente um caminho de realização e, de resto, uma produção social de qualidade é tanto mais importante quanto sabemos que, em nome do progresso económico e social, se observam ocorrências cada vez mais frequentes e preocupantes como sejam a rápida rotação do capital financeiro, a concentração de poder sobre o capital natural, uma maior padronização tecnológica e o consequente empobrecimento biofísico do território. É preciso que nos preocupemos muito mais com a temporalidade das tecnologias porque o planeta não está em condições de ser indefinidamente reconstituído pelas tecnologias. Evidentemente, levamos, também, em conta todo o arsenal disponível no território como sejam as indicações, denominações, selos, etiquetas, de processo e qualidade, as boas práticas de economia circular, as muitas métricas de sustentabilidade que, elas também, podem e devem ser objeto de negociação e convenção e, portanto, de curadoria territorial.

Em síntese, uma produção social de qualidade pode e deve ser um excelente pretexto, não apenas para rever e diversificar os programas de desenvolvimento, investigação e extensão agro rurais, mas, também, para relançar a economia e a sociedade locais em outras direções. A Dieta Mediterrânica é, simultaneamente, património e paisagem, ciência e tecnologia, arte e cultura, e um excelente pretexto para inovar localmente em matéria de inteligência coletiva territorial, por intermédio do instrumento economia das convenções, sob a marca e o patrocínio UNESCO, um pacto territorial para dar à luz uma biodiversidade própria, um sistema agroalimentar local e uma cultura simbólica representativa que respeitem e valorizem a apelação de prestígio internacional que nos foi concedida a todos.

António Covas

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