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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Verão de 1984 / 2

Paraíso com as suas intermitências de inferno. Como hoje. 
 Tarde cálida. Os emigrantes foram à vila às compras ou a flanar simplesmente. Grijó não bole, parece ter adormecido numa sesta colectiva. Chega-se a ouvir o ressonar consolado de alguém que se sentou à sombra duma tília e acabou por deixar pender a cabeça e adormecer.
 Mas, feia como escarro no céu limpo e transparente, uma coluna de fumo ergue-se, alastra, ofusca o Sol. A serra arde. Aqui, ao meu posto de escrita, quase chega o crepitar das labaredas e o cheiro a madeiras queimadas.
 Rilho os dentes de indignação e revolta. Era um outeiro magnífico o que agora arde, coberto de soberbos castanheiros, árvore que dá a prosápia às armas de Macedo. ‘Trezentos anos a crescer, trezentos no seu ser, trezentos a morrer’, diz o povo a respeito do simpático colosso verde que o alimentou durante séculos e lhe continua a dar fruto, madeira, lenha e sombra a rego cheio, para não falar nos saborosos frades e abesós (‘Lepiota procera’ e ‘Amanita caesarea’, respectivamente, para os senhores micólogos), cogumelos que no seu chão se criam. Mas estes castanheiros, cujos destroços fumegantes diviso daqui mesmo, da minha varanda, vão morrer muito antes dos dias cheios, à face das contas que o povo deita. 
 Por toda a serra de Bornes — este ano em Grijó, o ano passado em Castelãos, para o ano em Malta ou Gebelim —, o verde vai cedendo lugar ao castanho mascarrado das queimadas. A serra arde. O fogo rola, devora matas e carrascais, floresta e monte, faz razia na fauna já de si escassa e fecha uma volta mais a torneira do oxigénio.
 Porquê esta monstruosa catástrofe ecológica que, como o abutre de Prometeu nos penhascos do Cáucaso, vem todos os anos roer os fígados da nossa paciência?
 Caramba, nem tudo hão-de ser fogos de geração espontânea, nem tão-pouco o resultado de imprudências e desatenções. A seguir ao 25 de Abril, nas acesas querelas políticas em que os partidos se engalfinharam para afirmar a sua identidade e até, em alguns casos, para garantir a sua sobrevivência, o fogo posto, tal como a bomba, chegou a ser usado como arma, ao que se diz. Mas hoje, com as instituições consolidadas, a motivação política estará posta de lado. Deu lugar, parece, à motivação económica. Lê-se nos jornais, por exemplo, que madeireiros gananciosos arregimentam incendiários na mira de arrebanharem mais barato os salvados da floresta ardida. Mas será isso verdade? E, se o é, serão os madeireiros assim tantos que se torne difícil à GNR controlar a sua actividade? Nada, ali deve andar outro dedo, além do dos madeireiros. Aposto, dobrado contra singelo. Agora que dedo será esse...
 Começa a ouvir-se por toda a parte, já não entre dentes e à boca pequena, mas alto e bom som, o protesto do povo. É que, francamente, é demais. Com assustadora regularidade, a floresta portuguesa vai ardendo metodicamente ano após ano. E os governos — todos eles — o que fazem?  Dizem que para o ano é que vai ser: vai haver mais vigilância, mais prevenção, mais meios de combate, etc., etc. Mas a verdade é que acaba por nunca haver nada disso — ou, se porventura há, estamos conversados a respeito da sua eficácia.
 De penas mais gravosas e mão mais pesada da justiça é que parece que os governos não querem ouvir falar. Nada, os ventos sopram a favor dos delinquentes.  Em nome dos direitos humanos repudiam-se penas severas e definitivas. O que equivale a dizer, em termos práticos, que os criminosos devem levar penas leves para poderem, o mais depressa possível, reincidir no crime. 
 É só ler os jornais e ver o babaréu de protestos levantado entre os grupos de defesa dos direitos humanos, no estado da Califórnia, pela aprovação de uma lei que vai promover a redução dos impulsos sexuais dos violadores de crianças — muitos dos quais afirmam candidamente que violar crianças é compulsivo neles, e que voltarão a violar logo que se lhes ajeite maré. 
 Pode, pois, dormir descansada toda a vasta gama de assassinos, ladrões, raptores, violadores, narcotraficantes, terroristas ‘e tutti quanti’. Os defensores dos direitos humanos velam por que eles possam dar livre expressão às suas taras e compulsões. E, em conformidade, quando chega a haver julgamento, certos juízes, compinchas, mandam-nos em paz com uma palmadinha nas costas e a insulsa recomendação: ‘Vá lá, daqui para a frente portem-se bem, sim?’ Isso portam eles.
 Meter um pirómano confesso cinco anos — é um supor — na cadeia? Aqui d’el-rei, que é muita cadeia! Já o Dr. Almeida Santos (não me lembro bem em que qualidade — ele que tantas tem tido na nossa vida política) dizia certa vez que a solução para o problema dos fogos florestais tinha de ser pedagógica. Pedagógica? — torci eu o nariz na altura. Não sei de nenhuma pedagogia que não seja ronceira, e enquanto se ensina a respeitar e proteger a floresta, arde tudo quanto há para arder e mais o que entretanto se replantou. Já lá vão uns anos largos, e a pedagogia tem dado o resultado que se vê: zero.
 É tempo, creio, de avançar com medidas preventivas — mas medidas eficazes, e não decretozinhos de faz de conta. E, paralelamente, avançar com as medidas repressivas adequadas. Quem tem medo da palavra? Porque não medidas repressivas? Porque os defensores (certos defensores) dos direitos humanos vão protestar? Ora adeus. A sociedade não pode ser vítima da sua própria brandura. A lei e a justiça têm que se adaptar à gravidade da situação. É urgente apagar o fogo de vez. Isto é se queremos ter no Verão do ano 2001 uma sombra de árvore para fazer um piquenique.
 Voltando ao fogo de hoje.
 Por toda a aldeia, já acordada da sesta, sinto crescer o clamor da revolta.
 – Aquilo era atá-los a um pinheiro e deixá-los lá a estorricar – desabafa uma velha de negro, enquanto observa, com a mão em pala sobre os olhos, as chamas que devoram castanheiros.
 Arrepio-me do voto cruento. Repressão sim, mas não tão drástica. Que diabo, já não estamos no tempo dos afonsinos... Mas tem por força que ser demasiado branda a lei que permite tanta e tão descarada contravenção. Antes de actualizarem os seus vencimentos, senhores deputados, actualizem a lei do fogo posto. Por uma vez, teriam o povo em massa do seu lado.
 Pouso a caneta por hoje. A amargura é demasiada para eu poder continuar a debitar ironias como as que ai ficam. Levanto-me, busco algures o esquecimento. Entretanto, a frente de fogo lá vai cavalgando como besta enraivecida, matagal fora, rumo às alturas puríssimas de Malta, atemorizando e escorraçando os rebanhos de cabras que retouçam entre penedias. A coluna de fumo expande-se, tapa o disco do Sol, enegrece de angústias este bonito dia de Agosto em Grijó.

(Continua.)

A M Pires Cabral

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