quarta-feira, 22 de junho de 2022

Verão de 1984 / 3

 A instâncias do galo, que, desde que o dia começou a arruçar, não tem feito outra coisa senão tocar o seu cornetim, a dar-me vozes de erguer, levanto-me cedo, tomo um pequeno-almoço breve e saio para um ‘footing’ matinal pelos caminhos da serra. Um ‘footing’... Como a palavra me parece espúria e desajustada no lusitaníssimo ambiente de Grijó! Mas quê! Hoje tudo são inglesias no linguajar nosso de cada dia, que até parece que Camões e Vieira e Garrett não nos deixaram em herança uma língua e pêras. ‘Footing’... Passêo, com o ‘e’ bem fechado, é como se diz e como eu devia dizer em Grijó.
 Ontem choveu e, como estamos em finais de Agosto, era de supor que multidões de formigas-de-asa saíssem do formigueiro para o ar lavado de poeiras e miasmas. Assim o terá pensado também o garoto dos seus doze, treze anos, que se me depara numa volta do caminho, cavando vigorosamente com um ‘satcho,’ como aqui preferem dizer, pedindo emprestada a consoante africada ao castelhano, na mesma boa paz e familiaridade com que se pedem emprestados dois ovos à vizinha para uma fritangada.
 Pergunto-lhe, embora conheça de antemão a resposta, o que procura na berma do caminho.
 – Aludas – responde.
 Aludas são formigas-de-asa. Faço-lhe notar que ainda tem o cabaço vazio.
 – Há poucas. Choveu pouco… – diz ele, entre duas cavadelas decididas, que causam grande alarme e confusão no formigueiro. E, após ter cuspido nas mãos, para mais firme segurar o sacho: — Também para os pássaros que há...
 Os pássaros são neste caso meia dúzia de espécies que nos visitam imprudentemente com o Verão já adiantado e, se logram escapar aos arames das pescoceiras, o que é sempre problemático, batem a asa pelo equinócio do Outono, rumo a países mais quentes. 
 Deixo o sanhudo caçador a tombos com a escassez de aludas e de pássaros, e sigo avante. E, com efeito, noto que os caminhos estão cheios de silêncio. Aqui há vinte anos, se tanto, os caminhos, hortas e lameiros, numa manhã assim luminosa de Agosto, eram uma aleluia de trinados, chilreios, grasnidos, assobios, todas as vozes que o Criador distribuiu à passarada no dia em que pensou formar com ela um orfeão para o glorificar e bendizer. Aos residentes de toda a roda do ano (milharengos, pachacins, tentilhões, pintassilgos, pintarroxos, verdelhões, chinchalarraízes), juntavam-se por essa altura os tais ditos pássaros: tralhões, pardinhas, mosqueiros, tanjasnos, piscos, todos esses tolos e buliçosos dentirrostros que, burlados pela negaça da formiga-de-asa, caem aos centos nas esparrelas.
 Caem? Caíam. Agora tralhões, contam-se pelos dedos. Quem diz tralhões, diz, por exemplo, os lagartos que a cada passo se topavam no caminho, erguendo a cabeça ao mesmo tempo mofadora e bisbilhoteira e esgueirando-se logo, com um frufru de saias de ‘cocotte’, para a segurança dos silvados e dos buracos de parede. Onde param os lagartos, o verde rastejante dos lagartos? Parece impossível, mas, em todos os dias que leva Agosto e em todos os passeios matinais que tenho dado pela serra, não vi, neste ano da graça ou da desgraça de 1984, um único lagarto! Tão-pouco uma lagartixa.
 Os próprios insectos — tirante talvez as moscas, que inçam prodigiosamente da prodigiosa falta de higiene destes povoados — vão desaparecendo. Borboletas, por exemplo, que alegravam os prados com o seu voo estouvado e colorido — que é delas?
 A vida selvagem está em crise, só o não vê quem não quer. Deitem os zoólogos contas bem deitadas e digam lá quantas espécies estão para chegar com saúde e bizarria ao século XXI, nestes tempos em que a química, dona e senhora da agricultura, dita a sua lei nas garrafadas de insecticida e nas pazadas de fertilizante que a rego cheio se derramam sobre os campos e os escaldam.
 Pela minha parte, que me considero medianamente atento e preocupado com estas questões, cada ano que passa, noto a falta de mais qualquer coisa. Lembro-me de que, no ano passado, escrevi numa crónica algumas reflexões amargas sobre o desa¬parecimento dos pirilampos, que outrora, em noites sem lua de Verão, faziam de certas paredes um firmamento constelado de estrelinhas a luzir, tão bonitas como as verdadeiras.
Para não variar, também este ano tenho de dar baixa de mais uma espécie. Os morcegos.
Os morcegos eram os mais prodigiosos acro¬batas aéreos destes lugares. De voo ainda mais rápido e imprevisível do que o das andorinhas, ficava-me às vezes horas inteiras a vê-los voltear em torno do candeeiro da iluminação pública, em perseguição dos insectos que a luz atraía: bor¬boletas nocturnas, mosquitos, besouros, mesmo um ou outro louva-a-deus estouvado. Os morce¬gos, guiados pelo seu radar, mais fiável do que o inventado pelo homem, lá iam incansavelmente enchendo o papo, neste festim estival. Ainda o ano passado os vi, e admirei, na sua faina incessante.
Pois este ano os postes da iluminação ainda lá estão, a alumiar com a sua luz frouxa a grande noite de Grijó. Morcegos é que viste-los. E de repente dou-me conta de que não há morcegos porque os próprios insectos desapareceram tam¬bém. É verdade: a luz já não atrai a bicharada dos ares porque esta também já foi com os cantares da segada. E portanto não é só a falta de morcegos que me cabe carpir este ano, mas também a dos insectos. Annus horribilis.
O que mais impressiona nesta cavalgada louca para o fim da vida à superfície da Terra é a veloci¬dade a que galopam os cavalos da extinção. Espécies que precisaram de milhões de anos para se autonomizar, definir e apurar, não levam afinal mais do que alguns anos, poucos, para se extinguir. Neste momento, segundo a contabilidade dos biólogos, são já muitos os milhares de espécies desaparecidas e outras tantas as que se arriscam a desaparecer nos próximos tempos. Admite-se que algumas possam extinguir-se por exaustão do modelo biológico que representavam, mas a esmagadora maioria desapareceu e desaparece porque o homem, por inadvertência ou ganância, criou para elas um ambiente extremamente hostil.
O futuro não parece ser risonho. Cada espécie que se extingue é um elo que se quebra da grande cadeia biológica, com consequências muito para além daquilo que continuamos alegremente a avaliar.
E esta evidência amargura-me uma noite de férias. Os pássaros, as cobras e lagartos, os pirilampos, os morcegos, as pequenas criaturas que a lâmpada atraía já são coisa do passado em Grijó. Qual será, para o ano, a baixa a registar? Porque daqui a um punhado de anos, é mais que certo: será o próprio homem.
 Não vou falar — até por míngua de ciência — de ecossistemas, de cadeias alimentares, de todas essas noções com que os verdes nos sacodem baldadamente a consciência. Mas atrevo-me a fazer um pedido singelo aos professores primários, cujas mãos moldam o homem de amanhã: ensinem às criancinhas, por favor, que uma maçã bichada não é propriamente uma tragédia, nem um interdito como o toucinho para Mafoma: remove-se a parte afectada pelo bicho e come-se tranquilamente a parte restante. Garanto que sabe bem — bem melhor do que essas maçãs tão reluzentes que parece que foram engraxadas, que se compram nos supermercados e não sabem rigorosamente a nada. No dia em que a humanidade abandonar os tiques de nova-rica e compreender isto e deixar de comer com os olhos e usar com mais parcimónia os pesticidas, talvez regressem as borboletas e demais insectos, e após eles os lagartos e os tralhões — a vida, enfim.
 Talvez. Se não for já tarde demais.

(Continua.)

A M Pires Cabral

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