sexta-feira, 15 de julho de 2022

COISAS [...] — OS SAPOS

 O sapo ocupa um lugar importante no imaginário popular.  Talvez porque se pode parecer estranhamente com uma pessoa.  Não é verdade que às vezes encontramos nele traços fisionómicos, se assim me posso exprimir, quase humanos: quem não conhece alguém com cara de sapo?  Depois o próprio corpo, pesadão e compacto, sem a cauda dos restantes animais vertebrados que reptam sobre a terra, e apoiado «naquelas pernas de trás em dobradiça, no mesmo instante um banco ou uma catapulta» — como diz magistralmente Miguel Torga nesse inimitável e irrepetível livro de contos que se chama "Bichos", a propósito de Bambo, o sapo —, o próprio corpo, dizia, quem não viu já na praia corpos humanos assim?
 Para além destes pormenores de ordem física, vê a imaginação popular no sapo algo de misterioso e malévolo,  que a ciência imparcial não logra reabilitar.  Bem diziam os livros de leitura da antiga quarta classe que o sapo é um animal benfazejo, que desinça na bicharada daninha da horta.  Pois sim!  O lavrador, mal vê um sapo, será milagre que não lhe largue uma sacholada, quando não lhe inflija tormentos ainda piores, como esse cruel, alarve e absurdo uso de lhe meter um cigarro aceso na boca para vê-lo inchar, inchar, engolindo o fumo, até que rebente.  Nunca assisti a uma selvajaria destas, mas sei que a fazem muitas vezes os rapazes, e dela se gabam, como a padeira de Aljubarrota se deve ter gabado de acabar à pazada com quatro castelhanos esfalfados e famintos.
 Esta antipatia pelo sapo e pela prima rã vem decerto de tempos muito antigos.  Fedro deve ter-se limitado a dar forma a uma efabulação anterior, quando propôs a conhecida “Rana rupta et bos”, em que uma rã se quer comparar a um boi e, para ficar do tamanho dele, incha até que rebenta.   
 Retenha-se esta coisa de os pacíficos batráquios incharem, presente na fábula e no uso bárbaro acima descrito.  O inchar um sujeito é manifestação do desejo de dar-se ares, mostrar-se superior. Ficou todo inchado, diz o povo, querendo significar ufano, arrogante.  Ora esta ideia de vaidade não casa bem com o pobre sapo, que se arrasta pelo chão e incha como vimos por razões bem diferentes, e do paradoxo nascem na tradição popular historietas em que o bicharoco é apresentado como vaidoso, altivo, insolente e outras coisas ligadas ao inchar nos humanos.  Peço licença para transcrever dum livreco meu, “O Diabo Veio ao Enterro”, a seguinte historieta, que restituo o mais próximo que posso do linguajar nordestino:
 Diz que o sapo uma neite saíu à rua.  Um home que ia a passar viu-o e prècurou-le:
 – Onde vais, sapo?
 – Vou à ronda – respondeu o sapo, cheio de prosápia.
 – E se te batem?
 – O quê?! – disse o sapo, como se fosse alguma cousa do outro mundo.
 – Se tu bates a alguém? – emendou o home, de caçoada.
 – Ah, isso pode ser!
 O sapo lá foi à ronda, com tanto azar que um bei pôs-le a pata em cima e arrebentou-o, deitou-le as tripas de fora.  Ao arrastar-se para o buraco, o sapo tornou a encontrar o mesmo home.
 – Vês?  Eu não te dizia? Trazes as tripas d'arrasto...
 – Tripas?!  Atão não vês que isto é a corrente do relógio?
 É assim o sapo, na tradição popular.  Mas eu jurei que havia de o reabilitar.  Num outro livreco, “Os Cavalos da Noite”, dediquei-lhe nada menos do que um soneto.  Pasma o Leitor, descrente de que os sapos sejam assunto nobre para um soneto?  Pois saiba que são, sim senhor.  Louvava eu então no sapo, não a sua utilidade na horta, mas o canto com que preenche boa parte das noites no começo do verão.  
 Agora mesmo, no momento em que escrevo isto, a dois passos do coração do projecto de metrópole que dá pelo nome de Vila Real, eu oiço-os: é uma misturada de centenas de pequenos gritos, que se avolumam e arredondam numa como chocalhada de rebanho que regressa à aldeia, um alevante imensamente jubiloso e um tão forte apelo de forças vitais incoercíveis que me chega a comover.  Num mundo que se envenena a olhos vistos e exclui cada vez mais espécies do número dos vivos, e numa cidade que levianamente expulsa de si todo o sinal de ruralidade, graças a Deus que ainda se ouvem os sapos nas noites de Maio e Junho!  Quando, hélas!, deixarem de se ouvir, é sinal que Vila Real deixou definitivamente de ser a minha cidade, a cidade que me convém, para passar a ser a tal metrópole dos senhores políticos, habitada por setenta mil angústias.
 Onde os sapos me levaram...  Quem diria? 

Apostila em Julho de 2022: 
 Juro que, por esses anos 80, 90 do século passado, o coro dos sapos era uma coisa digna de se ouvir — uma espécie de aleluia jubilosa, que vinha do Rio Cabril e do Monte da Forca, saudando os dias grandes que aí vinham a reboque de Maio. De repente, quase diria de um ano para o outro, os sapos deixaram de se ouvir. Ignoro as razões. Talvez a cidade se tivesse tornado demasiado inóspita para a bicharada do campo. Não sei.. O que sei é que ainda hoje sinto saudades de ouvir cantar os sapos em Vila Real — cidade onde ‘canta’ agora outra casta de sapos, e mais não digo.

(Repórter do Marão, 6 de Julho de 1991)

A. M. Pires Cabral

Sem comentários:

Enviar um comentário