Por: José Mário Leite
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
«Como vais?» É um cumprimento vulgar e natural o qual tem, na esmagadora maioria dos casos, uma de duas respostas: «Mais ou menos» ou «Cá vou andando». Será, imagino eu, identicamente, por esse mundo fora, mutatis mutandis.
Terá sido assim, mais ou menos, que os naturais e residentes da Ucrânia se cumprimentavam até há pouco tempo. Ultimamente, porém, surgiu uma nova forma de responder à sudação «Como estás?» «Para já, estou bem. Vou-me aguentando, como o armário de Borodyanca!».
Nesta altura e nesta fase do horrendo conflito que assola o oriente europeu, em que edifícios, bairros e zonas residenciais voltam a ser o alvo preferencial dos mortíferos mísseis russos, ganhou forma, fama e notoriedade, que persiste, uma imagem de um edifício habitacional de Borodyanca atingido, no início da guerra, totalmente esventrado pelas bombas do exército ocupante. Tal como em todos os outros, a destruição era total, porém, neste, uma fotografia, largamente divulgada e partilhada, mostrava uma parede que ficara incólume. Encostado a esse inesperado e imprevisto refúgio, um armário resistira, perfeito e sem qualquer arranhão. No meio da enorme destruição, de milhares de mortos e feridos, para trás dos milhões que abandonaram os seus lares, a sua cidade, a sua região, o seu país, há ainda milhares e milhares de ucranianos que resistem, com a aparência do agora célebre armário... porém com enorme e inevitável destruição interna.
O horror, é sempre abominável para as suas vítimas. É verdade que um genocídio em massa causa um maior impacto na opinião pública e tem uma maior divulgação e persistência do que os crimes isolados mesmo os mais macabros e inumanos. Porém, para os pais e familiares, a perda de um filho causa o mesmo sofrimento independentemente de o seu desaparecimento acontecer de forma isolada ou integrada em ações mais alargadas.
A forma e as circunstâncias que antecederam e que presidiram ao trágico acontecimento, sim, podem ser fatores que agravam a já incalculável intensidade da dor.
No meio das dramáticas notícias da guerra russo-ucraniana, em maio deste ano, surgiu uma notícia, igualmente deplorável, do outro extremo do planeta. Em Uvalde, no Texas, um jovem armado entrou numa escola e abateu fria a sadicamente dois adultos e dezanove crianças. Qualquer bala, por mais minúscula, seria mais do que suficiente para ceifar aquelas vidas. Porém o autor da carnificina usou munições, de tal forma potentes e desproporcionadas que os corpos das suas vítima ficaram desfigurados, na zona de impacto.
Maitê Yuleana Rodriguez foi atingida na cabeça. Os pais reconheceram e identificaram o seu corpo pelas sapatilhas verdes que usava e nas quais desenhara, no que se converteu em macabro sinal identitário, um coração azul, na borracha da biqueira, sobre o dedo maior do pé direito.
A fé na Democracia baseia-se na crença de que, apesar dos entorses e desvios que a ação governativa possa sofrer, genericamente, o exercício do poder há de refletir o pensar e o querer da maioria da população.
Mas é difícil acreditar que um povo possa, em nome da defesa de hipotéticos e ainda inexistentes sonhos e planos de vida, retroceder, civilizacionalmente, mais de cinquenta anos e não seja capaz de dar um passo, por bem pequeno que seja, em direção ao futuro e à civilização, para proteger vidas concretas, sonhos reais, famílias constituídas.
José Mário Leite, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia) e A Morte de Germano Trancoso (Romance), Canto d'Encantos (Contos) tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.
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