Por uma estranha osmose, a loucura das vacas transferiu-se para as pessoas. Não é, é certo, uma loucura de tremuras e dificuldades de locomoção semelhantes às que causa a assim designada encefalopatia espongiforme dos bovinos, mas uma loucura toda ela histeria e irracionalidade. As pessoas veem na televisão as vacas a tremer, de patas a derrapar, mal fincadas no chão — e põem o caso em si.
Está claro que a consequência é um alarme cacarejado, como quando entra raposa na capoeira. Aqui d’el-rei, que já andamos todos contaminados, porque vieram da Inglaterra umas centenas de vacas que nós fomos consumindo metódica e inadvertidamente. E, tal como num impressionante conto de Torga, em que o leproso Julião vende um cântaro de azeite em que se tinha banhado numa impossível tentativa de cura, os que comeram desse azeite (leia-se: dessas e doutras vacas) começaram todos a ver-se já contaminados de lepra (leia-se: da doença das vacas loucas). «Ficavam como petrificados, invadidos de nojo, agoniados, a deitar contas à última almotolia que tinham comprado. E no fim, quando a dura certeza se lhes impunha, queriam arrancar o estômago, as entranhas, purificar-se da peçonha, vomitar no mesmo instante a lepra de que já se sentiam contaminados.» Vem este magistral e pedagógico conto nos «Novos Contos da Montanha».
Não sou eu que vou sangrar-me em saúde, nem arrancar o estômago nem as entranhas, nem sequer vomitar, à conta das tripas aos molhos que comi. Comi, souberam-me bem, pronto: se lá no fundo, embrulhada nas tripas, vinha a doença de Creutzfeldt Jacob, paciência. E não vou privar-me de um bom naco de carne, só porque é de vaca. Mioleira nunca comi, e logicamente não é agora que vou começar, mesmo tendo presente o temerário exemplo do ministro Gomes da Silva. Mas músculo, isso santa paciência. Hoje mesmo, 14 de Abril, que está um domingo glorioso, se Deus quiser, vou meter-me no carro com os amigos e dar uma saltada a Macedo de Cavaleiros, onde o restaurante Choupada nos vai servir um rodeão (modo de por ali chamarem ao que noutros lugares se chama fralda), assado nas brasas com uma pitada de sal, que nos há-de saber pela vida.
Como de costume, esta histeria das vacas que se gerou tem sido soprada pela bochecha incansável da comunicação social. Onde a esta cheirar um motivo, por mínimo que seja, para alarmar as pessoas, aí está ela a pôr (como dizem os brasileiros com graça) a boca no trombone. Ainda há dois dias, morreu uma senhora professora de setenta e cinco anos, algures no Minho. Os sintomas da doença que a vitimou eram tremuras e, por fim, perda de acção nos membros superiores e inferiores. A comunicação social viu logo ali representada a versão humana da doença das vacas loucas. Pois não é verdade que as vacas contaminadas também têm tremuras e perda de acção nos membros? Conclusão: não tem que ver, a senhora morreu com a doença de Creutzfeldt Jacob.
E se fosse? A doença, embora rara, existe e existiu sempre, mesmo antes de as vacas loucas terem chegado a Portugal. É, parece, um problema qualquer com os priões, uma proteína, que mata em cada ano uma pessoa em cada quatro ou cinco milhões. Como em Portugal somos dez milhões, é natural que, em 1966, a dois de nós a morte chegue por essa via. Uma simples questão de probabilidades. Pois não senhor: a TVI já difundia, com total inverdade (e impunidade) que é este o primeiro caso da doença verificado em Portugal. Porque isso, esse alarmismo quase criminoso a meu ver, é que ‘vende’.
Vivemos, com efeito, numa cultura de alarme. Convenhamos que não temos muitas razões para não viver alarmados, porque as ameaças multiplicam-se, vindas de todos os quadrantes, e nunca como hoje o homem teve tanta consciência de que, tendo destruído sistematicamente e até limites incomportáveis os equilíbrios naturais, está à mercê de um deslize ínfimo, uma pequena contingência. E alarma-se. O caso não é para menos. Mas, que diabo, alarmemo-nos com aquilo que é mesmo alarmante, que não é pouco. Não inventemos motivos de alarme. Senhores jornalistas, não pintem de mais negro aquilo que já é negro bastante: a nossa vida à superfície do planeta.
Está claro que a consequência é um alarme cacarejado, como quando entra raposa na capoeira. Aqui d’el-rei, que já andamos todos contaminados, porque vieram da Inglaterra umas centenas de vacas que nós fomos consumindo metódica e inadvertidamente. E, tal como num impressionante conto de Torga, em que o leproso Julião vende um cântaro de azeite em que se tinha banhado numa impossível tentativa de cura, os que comeram desse azeite (leia-se: dessas e doutras vacas) começaram todos a ver-se já contaminados de lepra (leia-se: da doença das vacas loucas). «Ficavam como petrificados, invadidos de nojo, agoniados, a deitar contas à última almotolia que tinham comprado. E no fim, quando a dura certeza se lhes impunha, queriam arrancar o estômago, as entranhas, purificar-se da peçonha, vomitar no mesmo instante a lepra de que já se sentiam contaminados.» Vem este magistral e pedagógico conto nos «Novos Contos da Montanha».
Não sou eu que vou sangrar-me em saúde, nem arrancar o estômago nem as entranhas, nem sequer vomitar, à conta das tripas aos molhos que comi. Comi, souberam-me bem, pronto: se lá no fundo, embrulhada nas tripas, vinha a doença de Creutzfeldt Jacob, paciência. E não vou privar-me de um bom naco de carne, só porque é de vaca. Mioleira nunca comi, e logicamente não é agora que vou começar, mesmo tendo presente o temerário exemplo do ministro Gomes da Silva. Mas músculo, isso santa paciência. Hoje mesmo, 14 de Abril, que está um domingo glorioso, se Deus quiser, vou meter-me no carro com os amigos e dar uma saltada a Macedo de Cavaleiros, onde o restaurante Choupada nos vai servir um rodeão (modo de por ali chamarem ao que noutros lugares se chama fralda), assado nas brasas com uma pitada de sal, que nos há-de saber pela vida.
Como de costume, esta histeria das vacas que se gerou tem sido soprada pela bochecha incansável da comunicação social. Onde a esta cheirar um motivo, por mínimo que seja, para alarmar as pessoas, aí está ela a pôr (como dizem os brasileiros com graça) a boca no trombone. Ainda há dois dias, morreu uma senhora professora de setenta e cinco anos, algures no Minho. Os sintomas da doença que a vitimou eram tremuras e, por fim, perda de acção nos membros superiores e inferiores. A comunicação social viu logo ali representada a versão humana da doença das vacas loucas. Pois não é verdade que as vacas contaminadas também têm tremuras e perda de acção nos membros? Conclusão: não tem que ver, a senhora morreu com a doença de Creutzfeldt Jacob.
E se fosse? A doença, embora rara, existe e existiu sempre, mesmo antes de as vacas loucas terem chegado a Portugal. É, parece, um problema qualquer com os priões, uma proteína, que mata em cada ano uma pessoa em cada quatro ou cinco milhões. Como em Portugal somos dez milhões, é natural que, em 1966, a dois de nós a morte chegue por essa via. Uma simples questão de probabilidades. Pois não senhor: a TVI já difundia, com total inverdade (e impunidade) que é este o primeiro caso da doença verificado em Portugal. Porque isso, esse alarmismo quase criminoso a meu ver, é que ‘vende’.
Vivemos, com efeito, numa cultura de alarme. Convenhamos que não temos muitas razões para não viver alarmados, porque as ameaças multiplicam-se, vindas de todos os quadrantes, e nunca como hoje o homem teve tanta consciência de que, tendo destruído sistematicamente e até limites incomportáveis os equilíbrios naturais, está à mercê de um deslize ínfimo, uma pequena contingência. E alarma-se. O caso não é para menos. Mas, que diabo, alarmemo-nos com aquilo que é mesmo alarmante, que não é pouco. Não inventemos motivos de alarme. Senhores jornalistas, não pintem de mais negro aquilo que já é negro bastante: a nossa vida à superfície do planeta.
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