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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

A CULTURA DO ALARME

 Por uma estranha osmose, a loucura das vacas transferiu-se para as pessoas. Não é, é certo, uma loucura de tremuras e dificuldades de locomoção semelhantes às que causa a assim designada encefalopatia espongiforme dos bovinos, mas uma loucura toda ela histeria e irracionalidade. As pessoas veem na televisão as vacas a tremer, de patas a derrapar, mal fincadas no chão — e põem o caso em si.
 Está claro que a consequência é um alarme cacarejado, como quando entra raposa na capoeira. Aqui d’el-rei, que já andamos todos contaminados, porque vieram da Inglaterra umas centenas de vacas que nós fomos consumindo metódica e inadvertidamente. E, tal como num impressionante conto de Torga, em que o leproso Julião vende um cântaro de azeite em que se tinha banhado numa impossível tentativa de cura, os que comeram desse azeite (leia-se: dessas e doutras vacas) começaram todos a ver-se já contaminados de lepra (leia-se: da doença das vacas loucas). «Ficavam como petrificados, invadidos de nojo, agoniados, a deitar contas à última almotolia que tinham comprado. E no fim, quando a dura certeza se lhes impunha, queriam arrancar o estômago, as entranhas, purificar-se da peçonha, vomitar no mesmo instante a lepra de que já se sentiam contaminados.» Vem este magistral e pedagógico conto nos «Novos Contos da Montanha».
 Não sou eu que vou sangrar-me em saúde, nem arrancar o estômago nem as entranhas, nem sequer vomitar, à conta das tripas aos molhos que comi. Comi, souberam-me bem, pronto: se lá no fundo, embrulhada nas tripas, vinha a doença de Creutzfeldt Jacob, paciência. E não vou privar-me de um bom naco de carne, só porque é de vaca. Mioleira nunca comi, e logicamente não é agora que vou começar, mesmo tendo presente o temerário exemplo do ministro Gomes da Silva. Mas músculo, isso santa paciência. Hoje mesmo, 14 de Abril, que está um domingo glorioso, se Deus quiser, vou meter-me no carro com os amigos e dar uma saltada a Macedo de Cavaleiros, onde o restaurante Choupada nos vai servir um rodeão (modo de por ali chamarem ao que noutros lugares se chama fralda), assado nas brasas com uma pitada de sal, que nos há-de saber pela vida.
 Como de costume, esta histeria das vacas que se gerou tem sido soprada pela bochecha incansável da comunicação social. Onde a esta cheirar um motivo, por mínimo que seja, para alarmar as pessoas, aí está ela a pôr (como dizem os brasileiros com graça) a boca no trombone. Ainda há dois dias, morreu uma senhora professora de setenta e cinco anos, algures no Minho. Os sintomas da doença que a vitimou eram tremuras e, por fim, perda de acção nos membros superiores e inferiores. A comunicação social viu logo ali representada a versão humana da doença das vacas loucas. Pois não é verdade que as vacas contaminadas também têm tremuras e perda de acção nos membros? Conclusão: não tem que ver, a senhora morreu com a doença de Creutzfeldt Jacob. 
 E se fosse? A doença, embora rara, existe e existiu sempre, mesmo antes de as vacas loucas terem chegado a Portugal. É, parece, um problema qualquer com os priões, uma proteína, que mata em cada ano uma pessoa em cada quatro ou cinco milhões. Como em Portugal somos dez milhões, é natural que, em 1966, a dois de nós a morte chegue por essa via. Uma simples questão de probabilidades. Pois não senhor: a TVI já difundia, com total inverdade (e impunidade) que é este o primeiro caso da doença verificado em Portugal. Porque isso, esse alarmismo quase criminoso a meu ver, é que ‘vende’. 
 Vivemos, com efeito, numa cultura de alarme. Convenhamos que não temos muitas razões para não viver alarmados, porque as ameaças multiplicam-se, vindas de todos os quadrantes, e nunca como hoje o homem teve tanta consciência de que, tendo destruído sistematicamente e até limites incomportáveis os equilíbrios naturais, está à mercê de um deslize ínfimo, uma pequena contingência. E alarma-se. O caso não é para menos. Mas, que diabo, alarmemo-nos com aquilo que é mesmo alarmante, que não é pouco. Não inventemos motivos de alarme. Senhores jornalistas, não pintem de mais negro aquilo que já é negro bastante: a nossa vida à superfície do planeta.

Repórter do Marão, 19 de Abril de 1996

A. M. Pires Cabral

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