segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Os dias do fim

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Joaquim Ismael Lebreiro, conhecido por J´aquim da Julha Latoeira, vivia com os pais e o irmão mais novo num casebre térreo que pertencia ao Dr. Antero Martins de Almeida e Noronha.
              Nada tinham de seu, a não ser uns tarecos velhos com que se serviam em casa.
              Joaquim era um rapaz honrado, trabalhador e vaidoso. Brioso no aspecto, vestia jaqueta, polainas e boina basca, com as suíças bem aparadas e a barba sempre bem escanhoada. O cabelo preto e forte, penteado para trás, andava sempre limpo e saudável, com brilhantina.
              Matilde tinha a mesma idade. Seus pais, igualmente sem nada de seu, tirando uma hortita para os lados da igreja, viviam na quinta do Dr. Antero, do qual eram feitores e que apenas iam à aldeia por temporadas: Páscoa, vindimas, amêndoa e azeitona.
              Os pais de Matilde serviam-se de tudo o que a casa dava, de maneira honesta. Seu pai Nazário, por ser caseiro da maior casa da aldeia e de uma das maiores do concelho de Torre de Moncorvo tinha, às vezes, ares superiores e aspirava a um casamento rico, principalmente para a Matilde, que era a mais bonita das quatro filhas e também da povoação. Era uma rapariga alegre, bem-disposta, nunca recusando auxílio a quem lho pedisse. Era uma samaritana que acudia a todas as desgraças. Todos gostavam daquela moça linda e alegre, de cabelo negro como a solidão, com olhos amplos, melancólicos e serenos, também negros, da cor das noites frias e intermináveis de Inverno, transbordando bondade e amizade. 
              Não tinha inimigos. Antes pelo contrário; quase todos os rapazes da aldeia suspiravam por ela, mas desde a primária que amava Joaquim e vice-versa.
              Era um amor profundo, quase inocente e intemporal, que todos aprovavam e abençoavam excepto, talvez o Pai, que muitas vezes falou à filha no filho do Zacarias, que era igualmente “guapo” e tinha a “bantage de possuir teres” e ainda por cima era filho único.
              - E olha qu´ele no desgostaba, que to juro eu. Inté p´ro contrário – sondava-a o pai, de vez em quando.
              - O qu´é que o meu Pai andou falando?! O Senhor sabe bem de quem eu gosto e com quem eu me quero casar!- dizia Matilde na sua voz suave e melodiosa, que todos apreciavam.
              Tinham agora dezanove anos.
              - Quando tiber binte e um ano, caso-me co  J´aquim e c´o sua bênção, meu Pai.
              Muitas vezes Nazário não chamava o Joaquim à jeira propositadamente e quando o chamava, arranjava maneira de a filha ir fazer outro serviço para local diferente. Só não podia evitar na apanha da azeitona, na amêndoa e nas vindimas.
              Joaquim era um sapo vivo que Nazário tinha que engolir. Quem na vida não tem sapos para engolir?
              O povo – que nunca é cego- comentava à boca pequena as intenções do Nazário, apesar deste nunca se ter oposto declaradamente ao namoro. Respeitava a vontade do coração da filha, embora o seu desejo fosse outro. Também por que os patrões, que eram padrinhos da menina, abençoavam tal amor. Gostavam de todas, mas daquela de maneira muito especial.
              Era um tempo em que os pais tentavam conseguir o casamento mais conveniente para os filhos. Mas aqueles resistiram a tudo: ele não era mais rico do que ela e ela, não conseguia ser mais pobre do que ele.
              Um dia em que o Dr. Antero foi dar um passeio na égua, passou pelo Joaquim que andava a abrir poças com ferro de bacelar para plantar amendoeiras na Capa Longa. Desceu e conversou com ele.
              - Ora muitos bons dias, meu rapaz.              
              - Muntos bôs dias tamãe p´ra Sua Incelência – respondeu tirando o chapéu e fazendo uma vénia.
              - Então, meu rapaz! Tu é que és o Joaquim?
              - Sou sim, Senhor Doutor. Um criado às ordes de Bossa Senhoria.
              - Então onde é que morais? – Perguntou o Dr. Antero para fazer conversa.
              - Saiba o Senhor Doutor qu´é numa casa de Sua Senhoria.
              - Minha?! Em qual?
              - Ali prós fornos, junt´ó Amadeu Soares.
              - Muito bem. Muito bem. E então diz-me cá. Sois vós que andais de namoro com a minha afilhada, a Matilde, não sois?
              - Sou eu mesmo, Senhor. Doutor. E com munta seriedade – apressou-se a acrescentar meio atrapalhado, rodando o chapéu nas mãos.
              - Eu sei, meu rapaz, eu sei. – Tranquilizou-o.- E olha que nós, lá em casa, bem gostaríamos que vos casásseis.
              - Se Deus Noss´ Senhor assim o quiser, é o sonho da minha bida inteira, Senhor Doutor, já desde catraio.
              E era. Joaquim só tinha olhos para Matilde e Matilde só tinha olhos para Joaquim. Era um namoro assente na sinceridade e no respeito e havia nele tanta harmonia, como se fossem duas peças de um puzzle.
              Mas...
              “Um home nunca deb´ria tocar na mulher antes do casamento e a mulher nunca debia deixar qu´o home a tocasse”. – Era o seu lema.
              Joaquim era um rapaz cismático, sério demais, não entrando nas brincadeiras próprias dos jovens. Não corria o Entrudo às raparigas, nem participava nos bailaricos ao som do realejo, tocado com emoção pelo Ti Álvaro “Moqueiro”, no terreiro do Ti Julho Teixeira. No entanto, era o primeiro a puxar o carro de bois carregado de troncos para a fogueira do Natal; a jogar o ferro ninguém lhe ganhava e na malha, só o Catrineta o ombreava. Então ao chincalhão, quando fazia de parceiro com o Carolino, eram invencíveis. Era de admirar o entendimento entre aquelas duas criaturas por sinais, imperceptíveis para os demais. Só pelo olhar, um sabia o jogo que o outro tinha. Era a “psícola”, como dizia o Domingos Batalhão.
              Joaquim via em Matilde a pureza a respeitar e nunca lhe passou pela abeça ir mais além. Para ele, Matilde era sagrada, tocada apenas pelo pecado original, do qual ela não tinha culpa. Mas às vezes Matilde retorcia-se como mulher e a carne desassossegava-se, mas os eflúvios eram reprimidos através da oração e da confissão ao Sábado.
              E assim se aproximaram do casamento e da união desejada, já desde os sete anos, dos bancos da Escola Primária. Mas Joaquim era cismático e de filosofia complicada. Quando Matilde um dia lhe disse:
              - J´aquim! Daqui a dois meses faço binte e um ano e temos que pensar no nosso casamento. Q´ria – me casar no dia da festa de Santa Luzia.
              - Ind´há  tempo – respondeu-lhe de maneira esquiva.
              Matilde notava que o assunto do casamento o assustava e o atrapalhava, vendo-o cada dia mais inquieto e pensativo.
              Joaquim era torrão, intransigente, inflexível e orgulhoso, como só os transmontanos sabem ser. Matilde conhecia-lhe bem o feitio granítico e ruminante. 
              “ Tens que te libertar desses pensamentos do demónio e fazer a proba dos nobe “ – repetia-lhe uma voz interior, vezes sem conta. Era um pensamento que o martirizava; aquele que actua no silêncio, na penumbra e no mais recôndito íntimo da consciência. Afligia-o, angustiava-o, moía, remoía, maçava e enfadava como moscas no fim de Verão.
              Era um dia de Março. Tinha chovido de manhã, mas à tarde o sol aquecia e os dias já se prolongavam fazendo jus ao ditado " Março marçagão, de manhã inverno, de tarde verão". Joaquim combinou um encontro às oito da noite, no muro da cortinha. Havia uma pequena porta junto à nora, com uma frincha por onde conversavam muitas vezes, mas sempre durante o dia.
              Matilde estranhou ser à noite, mas concordou de imediato. Por mais que insistisse, Joaquim não lhe revelou o motivo de tal encontro. Passou o resto do dia em sobressalto, com o coração na boca. O tempo passava vagaroso. O coração palpitava-lhe e só lhe vinham maus pensamentos à ideia, que em vão tentava afastar. Quando finalmente se aproximaram as oito horas, com a desculpa de estar indisposta, disse que ia apanhar ar.
              - Bai rapariga, bai lá, que ´stás cá c´uma cara, quinté parece que bistes o porco tinhoso! E mal tocastes na ceia – concordou a mãe que já tinha notado a sua inquietação.
              E foi com aflição que constatou que Joaquim ainda não tinha chegado. Sentou-se na parede do poço à espera. Daí a uns instantes ouviu passos a aproximarem-se.
              - És tu, J´aquim?
             - Sou. Infelizmente sou e p´ra nossa desgraça, tu biestes…! Pois atão, d´oje em diente, nunca mais me fales e nunca mais boltes a olhar p´ra mim. Porque, como biestes a ter comigo, tamãe birias a ter com outro calquera.
              Afastou-se em passos largos, apressados e definitivos.
              Matilde ficou sem sonhos. O vazio brotou dor, tristeza e solidão. E na plenitude desse nada, a raiz não criou raízes e apenas brotou uma angústia sufocante. Uma nuvem de breu desceu sobre a sua alma e sobre a sua honra.
              A vergonha pessoal e social ditaram lei e falaram mais alto.
              Na manhã seguinte encontraram Matilde já morta, dentro do poço.
              Quem matou Matilde?

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
     Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
    Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
      No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
     Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
    Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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