terça-feira, 9 de maio de 2023

Aldeias em guerra

 A gente anda tão pouco tempo neste mundo, que é pena que esse pouco tempo seja tantas vezes desperdiçado em desentendimentos e rivalidades, quando não em guerras abertas. O que se passa entre pessoas é muitas vezes replicado ao nível das povoações. Seja pelo motivo que for, em dado momento há duas povoações que se desentendem, e os ressentimentos prolongam-se pelos tempos fora.
Curiosamente é ao nível de povoações menores que essas quezílias são mais frequentes. O que não quer dizer que não se verifiquem também a nível de povoações maiores. 
Pelos meados do século passado — recordo perfeitamente —, havia uma rivalidade aberta entre Bragança e Mirandela, como se quisessem disputar uma à outra o lugar de maior terra do distrito. (Mais tarde, Macedo de Cavaleiros, cujo rápido progresso foi manifesto, chegou a envolver-se também nessa disputa, mas de modo pouco empenhado.) Os habitantes de Bragança e Mirandela chamavam-se mutuamente ‘narros’. O campo privilegiado para essas guerras eram os desafios de futebol, onde o clubismo e o bairrismo faziam detonar zaragatas que não raro causavam feridos.
E quem não ouviu falar da rivalidade entre Vila Real e Chaves, também em disputa de primazia. Em ocasiões em que a rivalidade andava mais acesa, fosse lá pelo que fosse, qualquer pretexto servia para causar um incidente. Já não é do meu tempo, mas ouvi contar, que, em tempos, quando vinha uma embaixada futebolística de Chaves a Vila Real, essa embaixada era recebida com uma faixa à entrada de Vila Real, em que lia: ‘´Portugal saúda Chaves.’ Estão a ver a maroteira: dizer aquilo equivalia a chamar espanhóis aos flavienses. Os flavienses vingavam-se aplicando aos vila-realenses um apodo extremamente irritante: ‘Fecha a roda’ (Isto, abstenho-me de descodificar.)
Hoje — e ainda bem — essas rivalidades atenuaram-se e já praticamente não têm expressão, mesmo ao nível das aldeias, onde costumes profundamente enraizados custam a morrer.
Calculo que em tempos antigos tenha havido mosquitos por cordas entre Grijó e Vale Benfeito. São duas aldeias separadas por um quilómetro, se tanto; qualquer dia encostam uma à outra. E já não há — pelo menos nunca testemunhei — manifestações hostis entre os habitantes de uma e outra povoação. Mas houve em tempos. Capacito-me disso ao ler nas “Memórias” do Abade de Baçal, esta curiosa quadra:

Vou daqui para Vale Benfeito,
Não vejo senão formigas.
Entro ali em Grijó,
Vejo lindas raparigas.

Uma confidência, a terminar: tive a sorte de casar com uma dessas lindas raparigas de Grijó.

A. M. Pires Cabral

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