Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
A noite chegou, e com ela a solidão. O silêncio parece ser sempre mais claro à noite, como um ditador cruel que nos força a olhar para aquilo que não queremos ver.
Agora que os dias se passaram, meu amigo, e o peso do meu uniforme de guerra foi deixado por aí, num qualquer canto da casa, sinto a urgência de te ter ainda mais próximo. Porque o que antes era batalha constante, agora é apenas... tempo. Tempo demais, talvez. E o espelho reflete um homem que já não sabe se está pronto para viver o que está à frente ou se prefere apenas fechar os olhos e deixar que o tempo passe.
Tempo mais do que suficiente para perceber que o que estava ali, à minha frente, na linha de fogo, era mais fácil de lidar do que este silêncio que agora me invade. É o que acontece quando a guerra termina e ninguém te ensina o que fazer quando chegou a hora de parar.
Não, não estou a ser dramático. Só que, depois de tantas batalhas, começo a perceber que a maior guerra talvez seja contra a inércia. A procura de uma razão, já não para salvar o mundo, mas para dar sentido ao próprio respirar.
Lembras-te da última vez em que me senti importante?... Agora, vejo-me sentado neste desconcerto, com as mãos a acariciar a lembrança das conquistas e dos momentos épicos, enquanto lá fora, cheira simplesmente a inverno. Longe de mim, as ruas estão cheias de gente, cada um com a sua pressa, os passos a voarem em direção a qualquer coisa que desconhecem. Mas todos seguem. E eu, aqui, à margem, a pensar se será este o verdadeiro combate. Aprender a descansar entre as sombras, lutar contra a vontade de desaparecer. Ficar e ser. E eu vou ficando, velho amigo. Eu vou ficando. Ficando a pensar como é estranho continuar a ser um homem, nesta missão.
A verdade é que, até hoje, nunca me dei conta do quanto a minha vida foi preenchida por pressa. Não sei se foi por mim ou se o mundo mo exigiu. Mas agora, sem propósito imediato, tudo me parece estagnado. Vejo-me a pensar e a perguntar o que estou realmente a fazer aqui. Como se fosse possível encontrar significado depois de tanto tempo dedicado a correr em círculos! Mas cá estou, diante de ti, em busca de respostas nas tuas palavras, que são só as minhas palavras a ecoarem-me na mente.
Por isso, não sei se posso tratar isto como uma conversa, um diálogo, para não me perder no abismo daquilo que sou. Ou de o julgar uma tola tentativa de resgatar o que parece estar sempre a escapar-me por entre os dedos. Sei apenas que nunca é suficiente.
Ou talvez eu entenda estas palavras que partilho contigo como um refúgio onde posso olhar para o meu próprio reflexo sem me assustar tanto. Não porque me revelem alguma verdade absoluta, mas porque, de alguma maneira, ganham mais significado quando as coloco todas juntas e, assim, me ensinam a lidar melhor com o vazio.
Sabes, por vezes acordo e não sei o que fazer. Olho para a janela e vejo o sol a nascer, como sempre fez, e sinto aflição. E há dias em que me apanho a olhar para o nada. Não estou a exagerar. Há momentos em que o espaço à minha volta me engole com um silêncio tão profundo que até os meus próprios pensamentos parecem ter medo de se revelar.
Mas hoje, decidi sair de casa. A princípio, achei que o ar fresco me ajudaria a clarear a mente. Mas, ao caminhar, deparei-me com algo peculiar. Vi um homem com os olhos cansados, como se o peso do mundo lhe tivesse agarrado os ombros, de assalto. Um homem com os olhos cansados, como eu, e com as mãos vazias, a olhar para o horizonte que, antes, parecia promissor e que agora só oferece uma paz desconfortável. Passei por ele e houve alguma coisa, no seu olhar, que me tocou. Não estava triste, mas perdido. Como eu. Perdidos num mundo que exige que estejamos inteiros e mais vivos.
Nos olhos desse homem eu vi os meus quando olho para o espelho e não encontro o que me agrade. Há ali mais certezas de quem fui do que quem sou. A imagem que me olha de volta é a de alguém que já não reconhece as suas marcas. Cada linha que me descaracteriza a pele, cada memória que teimo em carregar, parecem mais um peso do que uma história. E eu não queria sentir-me assim, uma sensação de desistência disfarçada de serenidade, a escorregar pelas horas como uma capa velha desgastada, sem conseguir livrar-me dela. Não queria sentir-me assim, como um erro que aprendo, em cada dia, a chamar de vida.
Mas será isso, o sermos? Um conjunto de falhas que tentam manter-se unidas? O mundo pede-nos uma máscara limpa, sem fissuras. Uma máscara imposta como uma segunda pele, que esconda o caos que nos abraça a cada respiração. Vejo que, por dentro, todos somos feitos de pedaços dispersos a tentarem ser inteiros. E eu, que já nem sei quantas vezes falhei, começo a acreditar que talvez o erro não esteja em falhar, mas em querer fingir que a emoção ainda é possível.
Por falar em emoção… chegámos àquela época do ano outra vez. O Natal. O final de ano. Para muitos, a luz e a comemoração. Mas para mim… bem, para mim, simplesmente a carga que me sufoca. Não, não me interpretes mal. Não sou um monstro que odeia o Natal. Não sou um homem frio, incapaz de apreciar a alegria que esta época traz. É só que... é só que, subitamente invadido pelo brilho de todas as luzes, pelas pessoas apressadas a comprarem presentes, pelas músicas a tocarem em cada esquina, quando as expectativas e os votos de 'feliz ano novo' me soam mais a uma obrigação do que a uma celebração genuína, a sensação de claustrofobia é imediata. Tudo chega como uma onda, todos celebram a maré e eu sinto-me engolido. Eu sou só um homem à deriva que observa, de longe, sem entender muito bem se estou a nadar ou a afundar-me.
Mas tu já sabias disto, não é, meu amigo? Claro que sabias. Sabias que, quando o final do ano chega, eu me escondo. Enquanto o mundo festeja, eu só quero celebrar a pausa onde moro entre as memórias do que fui e os ecos do que sou.
Recolho-me a um canto, longe da urgência da felicidade, um lugar silencioso onde o barulho das celebrações não chega e onde ninguém me reclama um sorriso ou uma expressão de alegria. Onde o Natal é apenas uma data e o final do ano, somente uma passagem. E pasma-te! A minha solidão diz-me que talvez haja mais vida dentro dela do que na algazarra dos outros, acreditas? Porque fugir deles não é fugir da vida, é apenas fugir de tudo o que me pedem para ser. As festas, os risos, os abraços…
Sabes, meu amigo, a verdade é que eu tento. Tento evitar a pressão que chega de todos os lados. Tento fazer de conta que é apenas mais um dia qualquer. Mas, mesmo assim, não consigo escapar ao fardo da época. Até o olhar das pessoas parece carregar uma pressão silenciosa de que todos deveríamos estar felizes, preenchidos por alguma coisa maior! E eu... eu não me sinto assim. Eu só me sinto cansado. Cansado de ser a exceção à regra, como se fosse aquele que não sabe fazer parte da dança. Cansado de tentar ser aquilo que não sou e de tentar caber naquilo que não me cabe. Afinal, o que é tudo isto, senão uma lembrança disfarçada de alegria? Lembrança dos tempos que se foram, das pessoas que se perderam, dos momentos que se desvaneceram como neve ao sol. E o mundo tenta forçar-me a uma felicidade que já não sei sentir.
Mas olha, mesmo assim, eu sou bom a descobrir humor até nos piores momentos.
Deixa-me contar-te uma história. Ontem tive de fazer o meu próprio almoço. Não estava com muito apetite mas, ainda assim, resolvi preparar um ovo estrelado. Um simples ovo estrelado. Mas a história não é tão simples. O ovo não queria colaborar. O óleo não estava quente o suficiente, a frigideira não estava no ponto, o óleo a escorrer por todo o lado, como se tivesse mais pressa de sair da frigideira do que eu de o aquecer. E o ovo? Ah! O ovo parecia ter vida própria! Tentou escapar-me várias vezes, como um inimigo traiçoeiro que se recusa a ser domado. Às tantas, o ovo assemelhava-se mais a um ovo escalfado em pânico do que a um simples ovo estrelado. E a frigideira tornou-se um campo de guerra. Eu, coitado, um soldado sem armas, a tentar salvar o que restava do almoço. E o que me restava? Olhar para o prato e rir. Porque se há uma coisa que a vida me ensinou até aqui, é que se o ovo não cooperar, pelo menos o riso mantém-me são.
E sabes que mais? Não me lembro de um único momento na minha vida em que tivesse dado tanta atenção a algo tão pequeno. Fui obrigado a aceitar que o ovo estrelado era, no fundo, uma metáfora da minha própria existência. Todas as tentativas que, no fim, não saem como planeadas. E ainda assim, tu comes. Porque, no final, comer o ovo é a única coisa que te resta. Como tudo na vida. Tentamos controlar as coisas, mas elas acabam por ter a sua própria vontade. O ovo, a vida, a morte… todos têm, de alguma forma, essa arrogância de se rebelar contra nós, como se já soubessem que somos apenas soldados na sua dança impossível de comandar. E transportamos, em cada dia que passa, uma sensação de desconforto.
Por falar em desconforto, lembro-me também de uma outra peripécia que me aconteceu há uns tempos. Eu tinha guardado, durante meses, uns sapatos bonitos. Estavam dentro de uma caixa, em cima do armário, à espera do momento certo. Um momento de celebração, claro. Quando o momento finalmente chegou, coloquei-os nos pés e... Bem, os sapatos eram bonitos, mas não serviam para o meu tipo de vida agora. Pareciam feitos para uma pessoa mais jovem, mais ágil, mais… em combate. E os meus pés? Os meus pés pareciam querer gritar ‘não, obrigado’, como se cada passo fosse uma tortura. Caminhei como se tivesse uma pedra dentro dos sapatos e, no fim, os pés estavam completamente derrotados. Quando tirei os sapatos, eles continuaram lá, ainda bonitos, mas a minha perceção deles mudou. Já não eram para comemorar. Eram um apontamento a recordar-me que os tempos de celebração tinham ficado para trás. Agora, as sapatilhas passariam a ser o meu conforto.
A vida tem uma maneira estranha de nos surpreender! Foi assim que soube que o descanso tinha chegado. A fase do guerreiro acabara. O campo de batalha enchia-se da minha ausência. O que restava era o tempo para olhar para os sapatos e para os ovos mal feitos, rir um bocado e tentar respirar. O que restava era uma pausa constante entre duas respirações. Ou, quem sabe, uma pausa tão grande que quase me fazia desaparecer na paisagem. Esta quietude que me consome, como se eu estivesse a ficar invisível. Já me perguntei várias vezes se não estou, de facto, a desaparecer aos poucos. E tu és uma parte de mim que ainda resiste a toda esta desagregação.
Agora, para terminar e deixar-te também a ti descansar, vou fazer-te uma confidência. Daquelas que só se dividem com os amigos como tu. Peço-te que não tenhas ciúmes. Olha que há pouco o que invejar na miséria de um homem.
Sabes, meu amigo, há uma mulher… Ela está lá, à distância. Por isso, é uma presença que não exige nada de mim, que não me pede para ser mais do que sou. Às vezes, quando me sinto perdido, quando a mudez da minha casa se torna pesada demais, é a imagem dela que encontro. Não a vejo, não a toco, nem sequer a ouço e, no entanto, essa imagem chega até mim como um bálsamo. Tem uma calmaria que me acalma, um tom sereno que parece saber exatamente onde a minha alma se perde.
E sabes lá tu, mulher, o quanto me aconchega sentir-te, o quanto o teu silêncio é a paz que procuro! Não há julgamentos, não há palavras pesadas, não te demoras em respostas. Não há tentativas de consertar o que já não tem remédio. Tu escutas. E isso já é o suficiente para que eu ainda me sinta quase inteiro, como se a minha voz, já rasgada e rouca, fosse algo que merece ser ouvido, mesmo que só por ti.
É estranho, sabes, meu amigo? Como alguém que está tão distante pode ser tão presente! Eu, que nunca fui bom a encontrar as palavras certas, que nunca soube como me entregar sem medo, com ela, sou apenas uma canção que sai sem querer. Canções que, confesso, nunca teria coragem de cantar a ninguém. O tom da minha voz, agora cansada, canta para ela. Canta para alguém que nem sabe da melodia, mas que, de algum modo, faz com que o meu espírito cante. Ela, que talvez nunca tenha sabido o que me faz sentir tanto, mas que, ainda assim, é uma espécie de tesouro distante, intocável, onde posso, por instantes, pousar o meu coração.
Ah! Como eu gostaria que soubesses, mulher, o quanto és para mim essa música sem pressa, sem exigências! E saberias que talvez o meu breve descanso venha disso. Talvez o meu parco descanso seja aceitar, finalmente, que o que eu procuro está em ti, mesmo que nunca o possa ter.
Acho que, hoje, meu velho amigo, estou a tentar entender o que restou de tudo o que vivi e tudo o que resta de mim. Não me interpretes mal. Não estou arrependido nem sou desagradecido. Estou só, como já te disse, perdido. E todos precisamos de alguém com quem falar em silêncio ao ouvido, num diálogo interminável, para questionarmos todas as escolhas, dúvidas e desejos e perguntar-lhe se ainda fazemos parte deste grande espetáculo da vida.
Como se diz por aí, agora sou apenas um guerreiro em descanso. Bem, espero mesmo que sim, porque, sinceramente, a única coisa que me resta é essa frase, para me consolar. E, porque no fundo, tenho bem consciência de que nesta breve linha do tempo, somos afinal… instantes! Apenas instantes.
Por isso, amigo, um dia destes, quando me cansar de todos os pensamentos que me ocupam, vou sentar-me a olhar para o céu, sabes? Não vou procurar respostas nem tentar entender os mistérios. Só vou olhar para o céu, como se fosse a última coisa que me resta fazer. Porque, no final, a paz, talvez seja só esta aceitação de nada saber. E eu, finalmente, terei aprendido a descansar. Estás a ver? Quem diria, não é?
- Paula Freire -
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.
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