sábado, 13 de setembro de 2025

Guardiões das Flores: Selvas de betão ou habitats improváveis?

 Rodeados pela agitação urbana, será que ainda temos espaço para os polinizadores? As respostas estão nesta nova crónica da série “Guardiões das Flores”, uma parceria entre a Wilder e o projeto PolinizAÇÃO.

Prado florífero em parque público com chupa-mel (Echium plantagineum) e pampilho-de-micão (Coleostephus myconis) em plena floração. Foto: Cláudia Fernandes

“As cidades são selvas de betão”. Durante muito tempo vigorou a ideia de que as cidades são ambientes artificiais e estéreis, onde a biodiversidade tem dificuldade em sobreviver. Felizmente, a ciência tem vindo a desmistificar este preconceito, mostrando que as cidades oferecem, sim, múltiplas oportunidades para a conservação de polinizadores.

Com um desenho e gestão consciente dos espaços verdes urbanos, estes valiosos aliados podem prosperar e surpreender-nos. Polinizadores como abelhas, borboletas, escaravelhos ou moscas-das-flores encontram, nestes refúgios urbanos, abrigo, alimento e locais de reprodução. Nesta crónica, damos voz aos parques e jardins, hortas, varandas, canteiros e floreiras, habitats improváveis que são verdadeiros guardiões das flores. Basta estar atento.

Parques e jardins

Os parques e jardins são espaços verdes urbanos que conciliam funções ecológicas, sociais, estéticas e recreativas. Esta multifuncionalidade assenta, também, numa vegetação mais rica e estruturalmente complexa, capaz de acolher uma fauna igualmente diversa, na qual se incluem numerosos polinizadores. Por serem, geralmente, os espaços verdes mais biodiversos e com maior expressão na malha urbana, oferecem excelentes condições para sustentar comunidades de polinizadores ao longo de todo o ano, desde que desenhados e mantidos com critérios ecológicos. 

Para além da relevância estética, a seleção das comunidades florísticas deve basear-se em evidência científica sobre o seu valor como fontes de néctar e pólen. Devem privilegiar-se plantas nativas, mas, quando necessário, podem incluir-se espécies exóticas não invasoras que complementem o habitat em períodos de escassez. A manutenção deve respeitar os ciclos de vida dos polinizadores, evitando o corte da vegetação durante a época de floração, sem, contudo, comprometer a fruição do espaço.

Deve-se, por exemplo, manter clareiras para recreio ativo e cortar as faixas laterais dos caminhos (mínimo 50 cm de cada lado), bem como cortar a vegetação nos acessos a anfiteatros, parques infantis ou outros equipamentos. Colocar sinalização informativa ajuda a explicar aos utilizadores que prados altos ou em floração não são sinal de desleixo, mas sim parte de uma estratégia ecológica.

Os parques e jardins funcionam também como elementos de ligação entre áreas verdes mais pequenas e dispersas, contribuindo para a conectividade ecológica: uma rede que permite aos polinizadores deslocarem-se, alimentarem-se e completarem os seus ciclos de vida, mesmo em contextos urbanos fragmentados. Quando são acessíveis a toda a população, assumem ainda outro papel essencial: são lugares onde o contacto com o mundo natural não só se torna possível, como também mais frequente, mais próximo e mais inclusivo. Este contacto, essencial para o bem-estar da população, permite igualmente despertar a curiosidade e fomentar, gradualmente, uma maior literacia sobre os polinizadores. Por esta razão, parques e jardins têm vindo a ser reconhecidos não apenas como espaços de fruição, mas como lugares de aprendizagem informal e de sensibilização. Até um breve passeio pode tornar-se num momento de descoberta, revelando a importância dos polinizadores, das plantas de que dependem e das complexas interações entre ambos.

Há parques urbanos que acolhem pessoas e biodiversidade com estratégias simples de manutenção, como regimes diferenciados de corte, que permitem a floração dos prados, promovem polinizadores e enriquecem esteticamente a paisagem. Fotos à esq. e ao centro: Cláudia Fernandes. Na foto à dir., por Sónia Ferreira, borboleta-asas-de-fogo (Pyropteron chrysidiforme) pousada numa flor de pampilho-de-micão (Coleostephus myconis).

Hortas urbanas 

As hortas urbanas, sejam familiares, escolares ou comunitárias, em articulação com outros espaços verdes urbanos, formam uma rede vital para a alimentação, hidratação, descanso e nidificação dos polinizadores, tendo, portanto, um papel importante na sua conservação nas cidades. 

Uma horta diversa, bem gerida e com boa exposição solar beneficia tanto o hortelão, como os polinizadores. Para que estes tenham sempre alimento, a horta deve incluir o cultivo de hortícolas, aromáticas como manjericão, tomilho, coentros, alfazema, entre outras, plantas de flores simples, semelhantes ao girassol, e até arbustos e árvores de fruto, cuja floração se distribua ao longo do ano. 

Existem misturas de sementes para polinizadores, que podem ser usadas na horta ou em faixas laterais. No entanto, é importante estar atento: a maioria das disponíveis no mercado não cumpre os critérios ecológicos desejáveis! Prefira as que contêm espécies autóctones da flora portuguesa e adaptadas ao tipo de solo e clima da sua zona. Em alternativa, pode manter uma zona com vegetação espontânea. Zonas com solo nu também são importantes para a nidificação. Se precisar de recorrer a fitofármacos, escolha sempre opções naturais. Considere instalar um hotel para polinizadores feito com madeira não resinosa perfurada com orifícios de 2 a 10 milímetros limados à superfície. Este deve ser colocado a mais de 1 metro do chão, orientado a sul e protegido da chuva, gatos e aves insetívoras. 

Cultivar flores nas hortas sempre foi tradição e hoje sabemos que é também uma questão de sobrevivência: dos polinizadores e de nós próprios. A polinização aumenta a produção e melhora a qualidade dos frutos, contribuindo para a nossa segurança alimentar. 

As hortas são também espaços de partilha e aprendizagem: observe os polinizadores e convide os seus familiares e vizinhos a virem conhecê-los melhor.

Das flores que atraem polinizadores às hortícolas que chegam ao prato, as hortas urbanas mostram como é possível respeitar a natureza, cultivar alimentos saudáveis e sentido de comunidade. Foto à esq.: Sónia Ferreira; ao centro e à dir.: Luísa Bonito.

Varandas, canteiros e floreiras

Ainda que muitas vezes desvalorizadas pela sua escala reduzida, as varandas, canteiros e floreiras podem ter um impacto cumulativo notável na cidade. Quando distribuídas em rede, funcionam como pequenos oásis interligados, fornecendo pontos de paragem para polinizadores em movimento. Cada metro quadrado conta, especialmente quando se trata de zonas densamente urbanizadas. 

A chave está na diversidade e continuidade da floração, com espécies adaptadas ao clima local e resistentes à seca. Plantas nativas como alfazema, tomilho, alisso, macela-real, saudades-roxas são muito apreciadas pelos polinizadores e fáceis de cultivar em vasos ou floreiras. Mesmo plantas ornamentais exóticas podem ser úteis, desde que  produzam néctar, como hissopo, fidalguinhos, verbena, entre outras. É igualmente importante evitar o uso de pesticidasem contexto doméstico, uma vez que os efeitos nefastos destas substâncias são amplificados em espaços pequenos. A escolha de substratos sem turfa e a adoção de práticas de jardinagem ecológica (como o aproveitamento de bioresíduos para composto caseiro ou a recolha responsável de sementes) tornam estas microzonas verdes ainda mais sustentáveis.

Além da componente ecológica e afetiva, pode existir também uma dimensão pedagógica nas varandas e canteiros floridos: ao cuidar de um pequeno cantinho verde, criamos laços com o ciclo das estações, observamos insetos de perto e educamos crianças e vizinhos sobre o valor da vida invisível que nos rodeia. Iniciativas comunitárias de plantação em espaços públicos e equipamentos degradados (como o projeto são flores, Coimbra!) mostram como o simples gesto de semear pode gerar redes de cidadania ecológica e cuidado partilhado.

Recuperação de floreiras abandonadas com a ajuda de cidadãos e a plantação de espécies nativas, promovendo mais biodiversidade e espaços vivos na cidade. Fotos: Catarina Maia

Não perguntes o que os polinizadores podem fazer por ti…

… pergunta o que tu podes fazer por eles. Plantar, semear, cultivar, mesmo em pequenos espaços verdes urbanos, são gestos simples que podem gerar grandes oportunidades para a conservação de polinizadores e permitir à natureza expressar-se em flores, frutos e vida. Em troca recebemos beleza e a profunda satisfação de fazer parte desta transformação. Construir refúgios para os polinizadores é também promover bem-estar e reaprender a viver como parte integrante da natureza. Estas tarefas são responsabilidade de todos. Das autarquias que gerem a maioria dos parques e jardins públicos, mas também de cada um de nós, enquanto cidadãos que desejam um mundo melhor.

Prado florífero integrado no Parque BAM (Biblioteca degli Alberi Milano) no centro de Milão. A delimitação impede o pisoteio e a sinalética informa os utilizadores sobre polinizadores e os seus habitats. Foto: Cláudia Fernandes

Cláudia Fernandes

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