quarta-feira, 29 de julho de 2015

FEIJÃO, Comeres Bragançanos e Transmontanos

“Antes fosse pra soldado
Antes fosse pró Brasil”
in Só, de António Nobre


E, nós fomos para o Brasil, antes tivemos a sorte trabalhosa de o descobrir por obra e graça de gente sabedora, inteligente e capaz de perscrutar para além do nevoeiro, personificada no sábio, cosmógrafo e ardoroso combatente Duarte Pacheco Pereira, o Aquiles Lusitano, cognome ganho dada a valentia em combate.
Fomos e levámos connosco o boi, o carneiro, a galinha e o porco que enquanto animais comestíveis estão na base da feijoada – a brasileira ascendeu a prato universal – a feijoada transmontana não conseguiu ultrapassar as barreiras da língua portuguesa, a bragançana ainda menos, para nosso descontentamento, apesar do talento das cozinheiras locais.
Levámos elementos essenciais à construção da feijoada de lá. Veja-se: lombo, carne seca de vaca, linguiça, chouriço, pá, peito, pé, orelha e rabo de porco, arroz, alho, cebola, mas trouxemos do Novo Mundo o feijão nas suas diversas variedades, elemento sem o qual não se pode conceber a... feijoada.
A técnica culinária da feijoada brasileira não difere da técnica da feijoada ao modo de Bragança, apenas o ingrediente de base é diferente, é feijão preto na generalidade do Brasil, exceptuando-se a Baía, aí usa-se o feijão mulatinho, já a feijoada transmontana emprega o feijão branco, além de, para geral contentamento, integrar o benquisto salpicão.
Nada devemos ter contra o reconhecimento à escala global da feijoada à brasileira, subsidiária da herança cultural portuguesa no referente à técnica e aos produtos mencionados, mas não é agradável verificarmos quão grande é a nossa inépcia na defesa e valorização do património culinário de expressão portuguesa.
Os prejuízos originados por tão estridente e vil tristeza são incalculáveis. É que em Tóquio, Seul, Pequim, Xangai, Saigão, Banguecoque, Wellington, Sidney, Camberra, Joanesburgo, Cidade do Cabo, Luanda, Vancouver, Toronto, Montreal, Nova Iorque, Boston, Los Angeles e São Francisco só para citar algumas cidades de topo à escala mundial, a feijoada brasileira impôs-se ganhando legiões de adeptos, o mesmo acontece até em Lisboa. Nós, tal como noutras situações semelhantes não temos tido talento na exaltação das nossas receitas por esse Mundo fora.
Esta leguminosa propicia-nos grãos comidos secos, ou frescos, mas sempre cozinhados, não pode ser de modo diferente. Vinda do cobiçado e fantástico Novo Mundo, as primeiras indicações de cultivo no México datam de 5000 a.C., no Peru 6000 a.C., chegou à Europa no século XV, passando a ser entendida como alimento fecundo a partir do século XVI.
Os compêndios relativos a produtos dizem que terá sido o papa Clemente VII o responsável pela sua introdução em França, ao oferecer à sobrinha Catarina de Médicis, aquando do seu casamento com o futuro Henrique II, uma bolsinha cheia de “grãos raiados de vermelho e branco, que parecem pedras preciosas confiadas à terra”. Há quem conte o episódio de forma diferente ou seja: o Papa recebeu as estranhas sementes tendo ordenado ao frade Piero Valeriano o seu cultivo. O frade vigiou o crescimento das sementes, os resultados revelaram-se óptimos, até porque os feijões (designados fagioli, dada a sua semelhança com as favas) agradaram ao exigente gosto do Papa. Na altura da partida de Catarina terá sido o frade a explicar-lhe as vantagens do uso dos feijões, incluindo um saco deles na bagagem da nubente.
A fogosa Catarina, deu dez filhos ao rei, nutria grande amor pelos comeres apurados, bem feitos, melhor servidos, introduziu na corte francesa o requinte da corte florentina, ficando conhecida não só porque mostrou as vantagens do pragmatismo político e frieza diplomática, igualmente, o nunca ter descurado a prática do pecado da gula contando com o amparo dos operativos feijões.
A cultura do feijão expandiu-se rapidamente contribuindo a par da batata e do milho maís (também produtos do Novo Mundo) para a enorme e benéfica alteração dos hábitos alimentares dos europeus.
O geógrafo Orlando Ribeiro em Opúsculos Geográficos na esteira de J. Leite de Vasconcelos, deixou-nos copiosa e fecunda informação acerca do modo como o feijão passou à condição de instrumento alimentar estratégico nos comeres das populações rurais e urbanas.
O feijão no Nordeste supriu a falta de outros alimentos, as colheitas copiosas geravam excedentes vendidos na cidade, especialmente no Mercado Municipal. Valia económica bem patente nas actas da Vereação da Câmara Municipal de Bragança e respectivas tabelas de venda e taxas de impostos sobre o feijão nas variedades cultivadas. O feijão branco, o amarelo, o vermelho ou rajado vendiam-se a preços mais altos que a castanha e a batata, sendo apenas superados pelo grão-de-bico.
Os feijões vieram atenuar a consistente carência de alimentos dos pobres, logo após a colheita consomem-se frescos no âmbito das sete cozeduras, secos também, enriquecem todo género de receitas até porque são muito nutritivos (300 calorias por 100 gramas), contendo mais proteínas do que a carne.
O gourmet Alexandre Dumas afirmava existirem três formas de comermos o feijão:” antes de maduros acompanhados da vagem, quando são denominados «feijões verdes»; um pouco antes da maturação, em grãos ainda macios chamados flageolets (feijões brancos); enfim, as sementes descascadas têm grande apelo popular”. O infatigável romancista esqueceu-se das saborosas cascas ou casulas depois de demolhadas a fazerem prova do provérbio: “a necessidade aguça o engenho”, ou entendido de outra forma a exemplificarem a argúcia das mulheres do Nordeste.
Existem à volta de quinhentas variedades de feijões. Em todos os estádios têm de ser cozinhados, no entanto, se verdes propiciam sopas primaveris e estivais, acompanham carnes e peixes, dão azo a guarnições aromáticas e saladas, secos aumenta a sua polivalência. Dão corpo a sopas de cunho invernal (exemplo é a sopa de água de feijões), caldos simples ou complexos ao longo de todo o ano, compartilham grande número de preparos culinários nas sete cozeduras praticadas, seja na categoria de elemento principal, seja na classe de acompanhante como se evidencia no exemplo retirado do romance Torre de Dona Chama, da autoria de Ernesto Rodrigues.
O investigador do crime em face da resposta recebida, pergunta: – “Comeram então às sete. O quê?
– Uns feijões com batatas, senhor doutor, ela, que nós somos pobres. Graças a Deus, não nos falta nada.”
É de tomo o valimento do feijão no conspecto dos comeres transmontanos, as cozinheiras exploraram e exploram inteligentemente as múltiplas variedades, representadas nas receitas que temos a obrigação de recolher, preservar e praticar.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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