«O filme não é para a cidade, o filme é contra a cidade», afirma António Reis que assina a realização do filme «Trás-os-Montes», conjuntamente com M. Martins Cordeiro.
O filme, que inicialmente se designava «Nordeste», palavra limitativa que a cidade vulgarizou, chamar-se-á definitivamente «Trás-os-Montes», a cuja raia se dá por nome de «fronteira do luto».
Da Idade Média aos nossos dias, a obra percorre as lendas que chegaram a Trás-os-Montes ou dela partiram. Reintegra a sabedoria chinesa, por exemplo, na mirandesa. «Isto é nosso», diria um mirandês falando duma chinesa.«Os actores não são profissionais, os actores são o povo transmontano».
Actores, além de outros, são o sr. Amador, camponês da Freixiosa, que, ao vestir a festiva capa mirandesa, retorna à sua dimensão de oráculo; o ferreiro de Ifanes, de 82 anos, gordo robusto, que escolheu a vida sedentária; os garotos Armando Manuel, «Armandito» na ternura dos que mergulharam nesta viagem e aventura através dos tempos, do Patronato de Santo António, de Bragança, com sardas que mais parecem borrifos de estrelas e ar profundamente triste; e o Luís Ferreira, a quem morrera a mãe há dois meses e que no filme teve de chamar mãe a outra pessoa. Optou pela libertação. «Um pequeno génio», como diria António Reis.
As filmagens demoraram 40 dias.
Foram gastos 15.000 metros de fita. Após a montagem, serão aproveitados não mais que 2.000.As verbas concedidas, que em dinheiro sonante atingem apenas os 900 e tal contos, não foram suficientes.«Trás-os-Montes», produção do Centro Português de Cinema, foi patrocinado pelo Instituto Português de Cinema, com a colaboração da R.T.P. e da Tobis.Da equipa técnica, além dos realizadores António Reis e M. Martins Cordeiro, fizeram parte o operador Acácio de Almeida, o assistente de montagem Carlos Nana, o iluminista João Silva e o técnico de som João Diogo. Foi director de produção, Pedro Paulo.
O «CASTELO DE HAMLET»O filme, a ser estreado na Primavera, única estação que, intencionalmente, não aparece representada na película, terá a sua ante-estreia em Bragança e Miranda. «É um acto de justiça e gratidão para com o povo transmontano».
Algumas das cenas são como que o ultrapassar das barreiras do tempo, se é que há muros para o tempo.
Autêntica barbárie, nas suas capas ancestrais, normandos e godos, com olhos de violência azul, sobem as arribas de Algoso, tendo ao alto o castelo de algum «hamlet» trasmontano, em ruínas hoje, mas soturno e denso ainda.
As minas de estanho de Ervedosa, onde em tempos homens morreram de silicose, um corpo desconjuntado e cercado por montes, com chapas de zinco atordoando ao vento e fios como veias rebentadas assomando da profundidade da mina.
Um garoto, o «Armandito», explorando esta paisagem de pesadelo e sem tempo, enquanto chove torrencialmente. A cena lúcida dos dois garotos a comerem pedaços de gelo numa ribeira: aparece-lhes um peixe congelado ainda com filetes de sangue riscando o dorso.
Mineiros com os seus capacetes pesados à vista, mirandeses e bragançanos com as capas nobres, reúnem-se na «Domus Municipalis de Bragança», arquitecturalmente única na Europa.
A Idade Média e Hoje, marcaram ali encontro. «É a primeira vez que vejo «mirandeses», diria, impressionado, um mineiro.
A última cena do filme é uma homenagem ao comboio que, a resfolegar, chega, há quase meio século, a Duas Igrejas.
O comboio passa, o maquinista diz: «Se for necessário, fazemos uma marcha-atrás». Repetem-se as filmagens. O comboio acaba sempre por chegar a Duas Igrejas.
n/assinado
Jornal Diário de Lisboa, pág. 6, 17 de Fevereiro de 1975 (republicado em Celulóide, n.º 209, págs. 8-9, de 10 de Abril de 1975)
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