Um dia, resolveu pregar uma partida ao casal de colegas. Meteu um sapo…
Na casa de Lisboa, certo dia, chegando a hora de dormir, o motorista engatatão, esgueirou-se sorrateiramente do seu quarto e foi até à ala das criadas - queria fazer uma surpresa à moça dos quartos.
Despiu-se e, em silêncio absoluto, abriu a cama da rapariga com toda a delicadeza. Entrou e começou a ajeitar-se dentro dos lençóis, até que um sapo, sentindo-se incomodado, desatou a coaxar. “Ah, pernas pra que te quero!” – assustado e alvoroçado, pulou da cama num ápice e desatou a correr, corredor afora, em ceroulas; e as criadas, que tinham sido avisadas por minha mãe, estavam de atalaia para apreciarem o espetáculo. Mas que bela cena de galhofa, foi armar minha mãe. Tudo ria a bandeiras despregadas.
A senhora da casa, Dona Maria José, era muito forreta com os serviçais, mas, minha mãe, já lhe ia conhecendo as manhas. Certo dia, após o pequeno-almoço, chamou por minha mãe:
- Bequinha vem cá filha.
- Sim, Dona Maria José.
- Vou sair. Manda cozer o feijão-frade com mais alguma coisa para o almoço.
- A Senhora vem almoçar?
- Venho sim, filha.
- E o Senhor José?
- Não contes com ele. Está ocupado com os negócios.
- Ora, pois, chícharos[1] bichosos! Claro que já os vamos comer. – pensava minha mãe no mais absoluto silêncio da sua alma, e, com um leve meneio da cabeça anuía ao pedido da Senhora.
Foi à cozinha dar as orientações:
- Chica: põe a cozer feijão-frade com ovos e depois arranjamos atum.
- Oh, Bequinha, mas o feijão está cheio de bicho!
- Olha a novidade, rapariga! Faz o que te peço e sem perguntas. Anda lá.
A Chica, indignada com a minha mãe, foi dizendo para si:
– Então o pessoal, farto de trabalhar como mouros, vai comer feijão bichoso?! Valha-me Santo Deus, ao que isto chegou! Uma casa tão rica.
E a malandra da minha mãe tratou de pôr frango a estufar. Ela, mesma, cuidou de fazer um prato de regalo.
A cozinheira não entendia nada de nada, mas não se atrevia a questionar a Bequinha.
Chegou a hora do almoço do pessoal. Minha mãe colocou um lugar na mesa da copa, para a Dona Maria José, e deu indicações para servir o frango na cozinha, para toda a gente. A cozinheira cada vez percebia menos do riscado, mas que fazer - ordens são ordens!
Almoçaram alegremente e nada se disse sobre a comida. Permanecia no ar o mistério deste malabarismo:
- Onde é que já se viu confecionarem dois pratos para o almoço? – pensavam todos, mas ninguém ousava questionar minha mãe.
Dona Maria José não apareceu para almoçar, coisa que minha mãe percebeu ao ter mandado fazer o feijão-frade, pois ela era sabedora de que o feijão estava a ficar com bicho. Mas, pelo sim, pelo não, seria melhor fazer de conta que a Senhora iria almoçar e tratar de tudo com a máxima discrição.
Sempre que a Senhora mandava fazer uma comida sem grande préstimo, minha mãe fazia um segundo prato para o pessoal, mas seguia as orientações da Senhora, não fosse o diabo tecê-las!
Um dia, organizou mais uma grande festa na casa de Lisboa, no Bairro Azul, iriam convidados da mais alta estirpe e o Senhor Presidente da Republica, Craveiro Lopes, estaria presente. Esta festa, de improviso, fez com que minha mãe se reinventasse e lá se organizou com o pessoal, como pode.
Terminada a festa, o Senhor Presidente foi cumprimentar minha mãe, dizendo-lhe que tudo estava excelente, como sempre, e que aqueles croquetes… ai os croquetes… como nunca tinha comido igual. Deu-lhe os parabéns, um forte aperto de mão e minha mãe sorria, por fora e por dentro.
Ai os croquetes! Como tudo foi feito em cima da hora, tratou de picar carne assada que tinha sobrado da véspera e fez os croquetes. Não era carne acabada de cozinhar, mas, talvez por isso, tenham ficado mais apaladados! E a minha mãe ria dos croquetes…
Foram todos passar uns tempos a uma das herdades do Alentejo. Minha mãe adorava ir até lá. Sentia-se quase na sua aldeia, Pádua Freixo. O contacto com a vida rural avivava-lhe as memórias. Mas também se indignava com o Senhor José, quando resolvia dar uns passeios pela herdade. Então não é que o foi confrontar com as más condições em que dormiam os trabalhadores, no celeiro:
- Oh, Senhor José: então o Senhor, com tanto dinheiro e propriedades, tem os trabalhadores a dormir no celeiro sem condições nenhumas? Vi os homens a dormirem nuns charagões[2], em cima uns dos outros, tudo sujo… Isto não é de uma alma cristã!
Ele, meneando a cabeça, desprendia um leve sorriso pela atitude de minha mãe. Não levava nada a mal o que viesse dela, bem pelo contrário, via-a como uma filha que não teve. A sã rebeldia e ousadia, caía-lhe muito bem.
Vindo - sabe-se lá de onde -, com um embrulho nas mãos, o Senhor José apresentou-se na cozinha. Pôs o embrulho em cima da mesa.
- Bequinha arruma pra aí esse embrulho, minha filha.
- Sim, Senhor José. – e minha mãe pegou no embrulho.
Mal, o Senhor José, saiu da cozinha, minha mãe abriu o frigorífico e meteu lá o embrulho, dizendo para si:
- Deixa-te ficar que assim que tiver um tempinho já te ponho de molho. - e continuou a fazer as suas tarefas.
No dia seguinte, o Senhor José, entrou na cozinha:
- Bequinha?
- Sim, Senhor José.
- Onde é que está o embrulho que te dei, para guardares, filha? Trá-lo cá. – e ficou a segui-la com os olhos, enquanto se dirigia ao frigorífico.
- Oh, Senhor José, o Senhor desculpe-me. É que ainda não tive tempo de pôr o bacalhau de molho. São tantos os afazeres… - e entregava-lhe o embrulho nas mãos.
- O bacalhau de molho, rapariga?! – fazendo um ar de espanto.
- Sim, Senhor José, não tive tempo. Arrumei o embrulho no frigorífico e…
- Bem vi onde arrumaste o embrulho, minha filha. E fizeste tu senão bem! – e dava pequenas risadas.
- Mas não está aborrecido, comigo?
- Algum dia me aborrecia, contigo, Bequinha? Só tu, minha filha, para arrumares o embrulho no frigorífico! – ria a bom rir, abanando a cabeça para os lados. - Contigo, está o mundo salvo e eu também! – e, em cima da mesa da cozinha, ia desatando o fio que amarrava o embrulho. Abriu o papel exterior, lentamente, para espicaçar a curiosidade de minha mãe que já era imensa.
Ai, a Bequinha! De olhos fixos e arregalados, gélida até à mais ínfima célula, incrédula até mais não poder, perdera a voz perante o que se lhe afigurou…
[2] Charagão – colchão feito de palha
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