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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 26 de junho de 2021

Viagem às raízes - 5ª parte

 Com os colegas? Minha mãe foi ressuscitar a infância. Pregava-lhes partidas. O motorista, que ia com ela às compras, andava mais ou menos enrolado com a criada dos quartos. Depois havia mais criadas que a ajudavam na cozinha e na copa.

Um dia, resolveu pregar uma partida ao casal de colegas. Meteu um sapo…

Na casa de Lisboa, certo dia, chegando a hora de dormir, o motorista engatatão, esgueirou-se sorrateiramente do seu quarto e foi até à ala das criadas - queria fazer uma surpresa à moça dos quartos.

Despiu-se e, em silêncio absoluto, abriu a cama da rapariga com toda a delicadeza. Entrou e começou a ajeitar-se dentro dos lençóis, até que um sapo, sentindo-se incomodado, desatou a coaxar. “Ah, pernas pra que te quero!” – assustado e alvoroçado, pulou da cama num ápice e desatou a correr, corredor afora, em ceroulas; e as criadas, que tinham sido avisadas por minha mãe, estavam de atalaia para apreciarem o espetáculo. Mas que bela cena de galhofa, foi armar minha mãe. Tudo ria a bandeiras despregadas.

A senhora da casa, Dona Maria José, era muito forreta com os serviçais, mas, minha mãe, já lhe ia conhecendo as manhas. Certo dia, após o pequeno-almoço, chamou por minha mãe:

- Bequinha vem cá filha.

- Sim, Dona Maria José.

- Vou sair. Manda cozer o feijão-frade com mais alguma coisa para o almoço.

- A Senhora vem almoçar?

- Venho sim, filha.

- E o Senhor José?

- Não contes com ele. Está ocupado com os negócios.

- Ora, pois, chícharos[1] bichosos! Claro que já os vamos comer. – pensava minha mãe no mais absoluto silêncio da sua alma, e, com um leve meneio da cabeça anuía ao pedido da Senhora.

Foi à cozinha dar as orientações:

- Chica: põe a cozer feijão-frade com ovos e depois arranjamos atum.

- Oh, Bequinha, mas o feijão está cheio de bicho!

- Olha a novidade, rapariga! Faz o que te peço e sem perguntas. Anda lá.

A Chica, indignada com a minha mãe, foi dizendo para si:

– Então o pessoal, farto de trabalhar como mouros, vai comer feijão bichoso?! Valha-me Santo Deus, ao que isto chegou! Uma casa tão rica.

E a malandra da minha mãe tratou de pôr frango a estufar. Ela, mesma, cuidou de fazer um prato de regalo.

A cozinheira não entendia nada de nada, mas não se atrevia a questionar a Bequinha.

Chegou a hora do almoço do pessoal. Minha mãe colocou um lugar na mesa da copa, para a Dona Maria José, e deu indicações para servir o frango na cozinha, para toda a gente. A cozinheira cada vez percebia menos do riscado, mas que fazer - ordens são ordens!

Almoçaram alegremente e nada se disse sobre a comida. Permanecia no ar o mistério deste malabarismo:

- Onde é que já se viu confecionarem dois pratos para o almoço? – pensavam todos, mas ninguém ousava questionar minha mãe.

Dona Maria José não apareceu para almoçar, coisa que minha mãe percebeu ao ter mandado fazer o feijão-frade, pois ela era sabedora de que o feijão estava a ficar com bicho. Mas, pelo sim, pelo não, seria melhor fazer de conta que a Senhora iria almoçar e tratar de tudo com a máxima discrição.

Sempre que a Senhora mandava fazer uma comida sem grande préstimo, minha mãe fazia um segundo prato para o pessoal, mas seguia as orientações da Senhora, não fosse o diabo tecê-las!

Um dia, organizou mais uma grande festa na casa de Lisboa, no Bairro Azul, iriam convidados da mais alta estirpe e o Senhor Presidente da Republica, Craveiro Lopes, estaria presente. Esta festa, de improviso, fez com que minha mãe se reinventasse e lá se organizou com o pessoal, como pode.

Terminada a festa, o Senhor Presidente foi cumprimentar minha mãe, dizendo-lhe que tudo estava excelente, como sempre, e que aqueles croquetes… ai os croquetes… como nunca tinha comido igual. Deu-lhe os parabéns, um forte aperto de mão e minha mãe sorria, por fora e por dentro.

Ai os croquetes! Como tudo foi feito em cima da hora, tratou de picar carne assada que tinha sobrado da véspera e fez os croquetes. Não era carne acabada de cozinhar, mas, talvez por isso, tenham ficado mais apaladados! E a minha mãe ria dos croquetes…

Foram todos passar uns tempos a uma das herdades do Alentejo. Minha mãe adorava ir até lá. Sentia-se quase na sua aldeia, Pádua Freixo. O contacto com a vida rural avivava-lhe as memórias. Mas também se indignava com o Senhor José, quando resolvia dar uns passeios pela herdade. Então não é que o foi confrontar com as más condições em que dormiam os trabalhadores, no celeiro:

- Oh, Senhor José: então o Senhor, com tanto dinheiro e propriedades, tem os trabalhadores a dormir no celeiro sem condições nenhumas? Vi os homens a dormirem nuns charagões[2], em cima uns dos outros, tudo sujo… Isto não é de uma alma cristã!

Ele, meneando a cabeça, desprendia um leve sorriso pela atitude de minha mãe. Não levava nada a mal o que viesse dela, bem pelo contrário, via-a como uma filha que não teve. A sã rebeldia e ousadia, caía-lhe muito bem.  

Vindo - sabe-se lá de onde -, com um embrulho nas mãos, o Senhor José apresentou-se na cozinha. Pôs o embrulho em cima da mesa.

- Bequinha arruma pra aí esse embrulho, minha filha.

- Sim, Senhor José. – e minha mãe pegou no embrulho.

Mal, o Senhor José, saiu da cozinha, minha mãe abriu o frigorífico e meteu lá o embrulho, dizendo para si:

- Deixa-te ficar que assim que tiver um tempinho já te ponho de molho. - e continuou a fazer as suas tarefas.

No dia seguinte, o Senhor José, entrou na cozinha:

- Bequinha?

- Sim, Senhor José.

- Onde é que está o embrulho que te dei, para guardares, filha? Trá-lo cá. – e ficou a segui-la com os olhos, enquanto se dirigia ao frigorífico.

- Oh, Senhor José, o Senhor desculpe-me. É que ainda não tive tempo de pôr o bacalhau de molho. São tantos os afazeres… - e entregava-lhe o embrulho nas mãos.

- O bacalhau de molho, rapariga?! – fazendo um ar de espanto.

- Sim, Senhor José, não tive tempo. Arrumei o embrulho no frigorífico e…

- Bem vi onde arrumaste o embrulho, minha filha. E fizeste tu senão bem! – e dava pequenas risadas.

- Mas não está aborrecido, comigo?

- Algum dia me aborrecia, contigo, Bequinha? Só tu, minha filha, para arrumares o embrulho no frigorífico! – ria a bom rir, abanando a cabeça para os lados. - Contigo, está o mundo salvo e eu também! – e, em cima da mesa da cozinha, ia desatando o fio que amarrava o embrulho. Abriu o papel exterior, lentamente, para espicaçar a curiosidade de minha mãe que já era imensa.  

Ai, a Bequinha! De olhos fixos e arregalados, gélida até à mais ínfima célula, incrédula até mais não poder, perdera a voz perante o que se lhe afigurou…

[1] Chícharos – feijão-frade em Trás-os-Montes
[2] Charagão – colchão feito de palha

Texto:
Ⓒ Teresa do Amparo Ferreira, 25-06-2021

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