quinta-feira, 2 de setembro de 2021

NOSSOS MONTES

 Artigo de opinião por Valter Hugo Mãe – escritor

Quando ia com a Odete a Vila Flor acontecia de estarmos sempre à pressa, a sairmos e voltarmos à Quinta da Veiguinha com muita fome de almoçar ou jantar. Comprávamos o pão feito no forno tradicional, a descolar a folha de jornal do fundo, e era uma alegria completa, não parecia necessário haver mais nada. Julgava eu, ignorante, que Vila Flor fosse a primeira praça e uma infinidade de campos. Agora, tendo andado ali a ver o incrível complexo das piscinas, a albufeira, a variante, a vista deslumbrante sobre a vila, com a igreja levantada em coração branco, descubro o trabalho incrível que ali se tem feito e admito que procuro moça herdeira e casadoira que me meta num daqueles palácios brasonados, lindos de perder o fôlego. Deixo a dica para aquele casarão que foi cenário de novela e tudo, que poucas vezes se viu fachada mais bonita.

Pude visitar as obras da casa que albergará o Encontro das Artes, um espaço de Graça Morais, essa genial que amo, e fiquei maravilhado. O projecto é de António Portugal, infelizmente falecido entretanto, e de Manuel Maria Reis, e é de uma beleza profunda. O uso do xisto, o desenho dos espaços, a varanda, a sala superior do segundo piso, estão para a arquitectura como o violino está para a música de Vivaldi. Há anos que ouvia falar daquela casa como sendo para honrar a grande pintora transmontana, há anos que a via como pequena, embora bonita na praça. O espanto é, pois, enorme quando entramos e descobrimos a amplitude interior, como a porta se torna magia para um mundo de Alice onde tudo subitamente se agiganta. Já mal posso esperar que fique pronta. É já um património essencial para a identidade e auto-estima de Vila Flor e de toda a região.

Andar por estes montes é, pois, catar surpresas. Em Torre de Moncorvo, por exemplo, um complexo escultório da autoria de Hélder Carvalho homenageia três autores brilhantes cujas vidas e obras tocam naquela terra. Borges, Torga e Saramago estão digníssimos levantados em ferro, imortais e para sempre estudando a humanidade. O que impressiona na obra de Hélder Carvalho é a sóbria grandeza, um certo efeito límpido de caminhar entre figuras que se tornam míticas e, ao mesmo tempo, tão perto de um abraço. Sinto-me comovido pela oportunidade de regressar ao abraço de Saramago. Lembra-me como chorei ao abraçar o José Afonso do Pedro Figueiredo.

Chego ao calor de Alfândega da Fé para abrir uma exposição curada por António Franchini, incluída no projecto Onda Bienal, da Bienal de Gaia, uma direcção de Agostinho Santos. Não sei ver-me como artista plástico. Deparo-me com as obras enquanto sempre observador, alguém que encontra mais do que cria, e é gratificante essa relação inexplicável. “Um pouco depois da terra muito antes da morte”, assim chamei à exposição que vai na Galeria José Rodrigues, é uma reflexão sobre a espiritualidade, citando El Greco, lembrando o meu pai, Cruzeiro Seixas e buscando um auto-retrato que possa apaziguar-me com a tragédia de não vivermos mais nada, de não nos vermos mais, de não nos podermos mais amar.

Ando pelos montes a intensificar, e colher um figo poderá ser, por tão simples, um fim de vida perfeito. Uma perfeição que Vila Flor conserva.

Foto: Lela Beltrão

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