Tirante os anos em que, por puro mimetismo ou, digamos assim, por integração sociológica, disparei a espingarda de pressão de ar sobre uns quantos pardais e, mais tarde, matei uma ou duas perdizes a chumbo seis, tirante isso sempre senti respeito pelas aves. Quaisquer aves, sejam as grandes rapaces, sejam os mais miúdos e discretos passarinhos — mas principalmente estes. Aprendi os nomes de muitos e a distinguir o canto de alguns. Há para mim qualquer coisa de fascinante naquele ramo bem-sucedido dos répteis primitivos, que se autonomizou, ganhou plumas e logo asas, e sangue quente, cores vistosas, voz em geral melódica e uma irrequietude graciosa que consola a gente ver.
As aves têm-me fornecido espectáculos que gosto de recordar.
Uma vez, por volta de 1950, a bordo de um automóvel que me levava de Macedo para Chacim, pude ver, ali por alturas da recta da Mulher Morta, dezenas de abutres que se afadigavam em torno de uma carcaça de burro ou coisa que o valha.
Este nome de Mulher Morta sugere que ali terá ocorrido um qualquer obscuro drama, rematado com a morte de uma não menos obscura mulher. Estes topónimos bolem comigo, e a minha balda de contador de histórias alvoroça-se e põe-se a salivar pavlovianamente.
Mas tornemos aos abutres. Belicosos e grulhas, disputavam entre si os despojos ensanguentados, com arreganho e grande soma de grasnidos coléricos e repoupos desajeitados. Nunca esqueci a cena: parecia-me estar a assistir ao vivo a um documentário do National Geographic. Assim como não esqueci o voo circular dos abutres, nas arribas do Sabor, próximo da Ponte de Remondes, quando em rapazola ia para ali à pesca. Hoje, abutres, praticamente só nas arribas do Douro Internacional, e mesmo aí é preciso apaparicá-los com carcaças de animais abatidos adrede, quando não qualquer dia nem aí os há.
Em Vila Real, no apartamento em que ainda moro, assisti a uma cena com andorinhas que julgaria impossível. Deu-se o caso que as andorinhas deram em fazer o ninho por cima das minhas varandas, contrariamente à minha vontade e à de minha Mulher — porque tinham o péssimo hábito de sujar com os seus dejectos a roupa posta à cora. O Leitor talvez não faça ideia da espantosa quantidade de excrementos que o ventre laxo de uma família de andorinhas produz diariamente. Ainda lhes derrubámos os ninhos uma ou duas vezes, mas a sua obstinação em reconstruí-los acabou por nos enternecer, e contemporizámos, resignados a estender a roupa noutro estendal.
Segue-se que uma noite de ventania, um dos ninhos, acaso mal construído, caiu. E era ver, na manhã seguinte, as andorinhas todas da zona, dúzias e dúzias delas, a esvoaçarem defronte das ruínas do ninho, chilreando excitadas. Assim como quem comenta o sucedido: ‘Coitada de fulana! Olhai o que lhe aconteceu ao ninho esta noite!’ Não vejo qualquer diferença entre aquela solidariedade e as compungidas visitas que se fazem a pessoa que tenha sofrido calamidade equivalente.
Já tenho assistido por mais de uma vez, a um truque que fazem as pardocas, quando acontece algum filhote precipitar-se prematuramente do ninho e ficar no solo à mercê do primeiro predador. Se há gato nas redondezas, a mãe pardoca faz uma simulação prodigiosa para chamar a atenção do felino para si, desviando-lha dessa forma do pardalito indefeso: finge que tem uma asa quebrada e que não pode voar, saltitando aflita ao rés do solo. O gato imagina ali uma suculenta e fácil refeição e dirige-se para ela — afastando-se assim da cria, que, essa sim, seria uma refeição verdadeiramente fácil. E com este teatro vai afastando cada vez mais o gato, até que, vendo o filhote a salvo, como por milagre recupera o voo e ala, que por aqui me vou — deixando o gato a arrenegar da sua credulidade.
Teatro, disse eu — que outra coisa se pode chamar a isto? Quem lhes ensinou o truque? «Vejam agora os sábios na escritura/ Que segredos são estes da natura» — como aconselhava Camões.
Finalmente. Numa rua quase de arrabalde onde passo com alguma frequência não mora muita gente. Mas mora alguém que odeia melros. Como os odeia, rouba-os do ninho, quase implumes, e ferra com eles em gaiolas que depois pendura na varanda, quase como os caçadores africanistas penduravam cabeças de feras na parede da sala-de-estar. Pelos modos, o fulano gosta de ter o exclusivo da música daqueles pobres melros reclusos. Como se se pudesse privatizar o assobio dum melro…
Pois bem. Tenho assistido ocasionalmente a um espectáculo extraordinário que passo a narrar e que me deixa sempre uma angustiazinha e uma raivazinha a bulir no peito.
Numa das gaiolas daquela varanda habita um melro que por vezes assobia, embora confinado num espaço tão exíguo para as suas asas, que pediriam antes amplidão e horizontes e relvados com muitas minhocas. E então — isto é rigorosamente verdade, juro — outro melro, que tem a sorte de viver em liberdade, vem junto da gaiola e esforça-se por entrar nela, ou então por torcer os arames e libertar o companheiro — hipótese esta que prefiro, por mais heróica e mais poética, além de inspirada num poema de Junqueiro de que também se fala algures neste livro.
Depois de se debater durante alguns minutos contra os arames, chega à conclusão de que não há nada a fazer e afasta-se desalentado, deixando mais desalentado ainda o prisioneiro que acaso teria fiado do amigo a sua libertação.
E é-me então impossível refrear a indignação contra os desapiedados carcereiros. Como escreveu António Cabral num poema cheio de ‘ses’: «Se me fizessem ministro…»
As aves têm-me fornecido espectáculos que gosto de recordar.
Uma vez, por volta de 1950, a bordo de um automóvel que me levava de Macedo para Chacim, pude ver, ali por alturas da recta da Mulher Morta, dezenas de abutres que se afadigavam em torno de uma carcaça de burro ou coisa que o valha.
Este nome de Mulher Morta sugere que ali terá ocorrido um qualquer obscuro drama, rematado com a morte de uma não menos obscura mulher. Estes topónimos bolem comigo, e a minha balda de contador de histórias alvoroça-se e põe-se a salivar pavlovianamente.
Mas tornemos aos abutres. Belicosos e grulhas, disputavam entre si os despojos ensanguentados, com arreganho e grande soma de grasnidos coléricos e repoupos desajeitados. Nunca esqueci a cena: parecia-me estar a assistir ao vivo a um documentário do National Geographic. Assim como não esqueci o voo circular dos abutres, nas arribas do Sabor, próximo da Ponte de Remondes, quando em rapazola ia para ali à pesca. Hoje, abutres, praticamente só nas arribas do Douro Internacional, e mesmo aí é preciso apaparicá-los com carcaças de animais abatidos adrede, quando não qualquer dia nem aí os há.
Em Vila Real, no apartamento em que ainda moro, assisti a uma cena com andorinhas que julgaria impossível. Deu-se o caso que as andorinhas deram em fazer o ninho por cima das minhas varandas, contrariamente à minha vontade e à de minha Mulher — porque tinham o péssimo hábito de sujar com os seus dejectos a roupa posta à cora. O Leitor talvez não faça ideia da espantosa quantidade de excrementos que o ventre laxo de uma família de andorinhas produz diariamente. Ainda lhes derrubámos os ninhos uma ou duas vezes, mas a sua obstinação em reconstruí-los acabou por nos enternecer, e contemporizámos, resignados a estender a roupa noutro estendal.
Segue-se que uma noite de ventania, um dos ninhos, acaso mal construído, caiu. E era ver, na manhã seguinte, as andorinhas todas da zona, dúzias e dúzias delas, a esvoaçarem defronte das ruínas do ninho, chilreando excitadas. Assim como quem comenta o sucedido: ‘Coitada de fulana! Olhai o que lhe aconteceu ao ninho esta noite!’ Não vejo qualquer diferença entre aquela solidariedade e as compungidas visitas que se fazem a pessoa que tenha sofrido calamidade equivalente.
Já tenho assistido por mais de uma vez, a um truque que fazem as pardocas, quando acontece algum filhote precipitar-se prematuramente do ninho e ficar no solo à mercê do primeiro predador. Se há gato nas redondezas, a mãe pardoca faz uma simulação prodigiosa para chamar a atenção do felino para si, desviando-lha dessa forma do pardalito indefeso: finge que tem uma asa quebrada e que não pode voar, saltitando aflita ao rés do solo. O gato imagina ali uma suculenta e fácil refeição e dirige-se para ela — afastando-se assim da cria, que, essa sim, seria uma refeição verdadeiramente fácil. E com este teatro vai afastando cada vez mais o gato, até que, vendo o filhote a salvo, como por milagre recupera o voo e ala, que por aqui me vou — deixando o gato a arrenegar da sua credulidade.
Teatro, disse eu — que outra coisa se pode chamar a isto? Quem lhes ensinou o truque? «Vejam agora os sábios na escritura/ Que segredos são estes da natura» — como aconselhava Camões.
Finalmente. Numa rua quase de arrabalde onde passo com alguma frequência não mora muita gente. Mas mora alguém que odeia melros. Como os odeia, rouba-os do ninho, quase implumes, e ferra com eles em gaiolas que depois pendura na varanda, quase como os caçadores africanistas penduravam cabeças de feras na parede da sala-de-estar. Pelos modos, o fulano gosta de ter o exclusivo da música daqueles pobres melros reclusos. Como se se pudesse privatizar o assobio dum melro…
Pois bem. Tenho assistido ocasionalmente a um espectáculo extraordinário que passo a narrar e que me deixa sempre uma angustiazinha e uma raivazinha a bulir no peito.
Numa das gaiolas daquela varanda habita um melro que por vezes assobia, embora confinado num espaço tão exíguo para as suas asas, que pediriam antes amplidão e horizontes e relvados com muitas minhocas. E então — isto é rigorosamente verdade, juro — outro melro, que tem a sorte de viver em liberdade, vem junto da gaiola e esforça-se por entrar nela, ou então por torcer os arames e libertar o companheiro — hipótese esta que prefiro, por mais heróica e mais poética, além de inspirada num poema de Junqueiro de que também se fala algures neste livro.
Depois de se debater durante alguns minutos contra os arames, chega à conclusão de que não há nada a fazer e afasta-se desalentado, deixando mais desalentado ainda o prisioneiro que acaso teria fiado do amigo a sua libertação.
E é-me então impossível refrear a indignação contra os desapiedados carcereiros. Como escreveu António Cabral num poema cheio de ‘ses’: «Se me fizessem ministro…»
(Continua.)
(Foto internet)
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