segunda-feira, 1 de agosto de 2022

MORGADO - Parte III

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

... Continuação

       Numa sexta- feira, depois de todos cearem, Morgado limpou a boca com as costas da mão e disse para a mulher:

       - No me ´speres munto cedo. Agora tanho um trabalhinho p´ra fazer.
       - Mas donde irás tu, home dum raio, c´uma noute destas?! No se bê um palmo à frente do nariz! – Protestou a Glorinha.
       - Eu sei o caminho d´olhos fitchados. Num há-d´haber nubidade.
       - Inda cai por i alguma nebada…
       - Boa nebada, terra ´strumada – desarmou- a o marido.
       - Sete nebadas e um nebão, fazem munto pão- acrescentou o filho mais novo de sete anos, que  herdara as manhas do pai.
       - Tamãe já `judas à missa?! – riu-se a Mãe.
       - Boa é a nebe que a seu tempo bem – desafiou-o o Pai.
       - Ano de nebão, ano de pão – respondeu-lhe o filho.
       - Folga o trigo debaixo da nebe, como a obelha debaixo da pele.
       - Em ano de munta nebe, pagó labrador o que debe – continuou o filho, não querendo ficar para trás.
       - Mas ondé qu´este inxalmo bai buscar tanta pantominice!! – Disse a Mãe orgulhosa, acariciando-o na cabeça. 
       - Só quero que no banha mais nenhuma nebe buraqueira c´má d`há há quinze dias, que nos obrigue a andar coa pá e coa bacia a tirá-la de casa.
       - Este bosso pai é mais tilhudo do qu´a mula do ti Lampreia. Inda t´há-des meter nalguma alhada – resmungou a Glorinha.
       - Ó mulher, já te disse que sei bem o qu´ando a fazer. Mas afinal falo eu, ou tchia um carro?

       Morgado foi à pilheira e tirou de lá um foco com as pilhas novas que tinha comprado em Moncorvo, na casa Moreira. O céu estava lavadinho e areado como a panela de ferro em que Glorinha fazia o caldo e os feijões com couves. As estrelas pareciam furinhos no manto azul-escuro do céu. Desceu a rua da Lameira, passou pela capela do Senhor dos Aflitos, pela capela de Santo António, a seguir pelo chafariz e pela capela de Nossa Senhora da Assunção. Seguiu até ao concelho e virou à direita para a rua da Igreja, que ficava no estremo da aldeia, pegada ao cemitério. Continuou a subir pelo caminho do Sesmo, um caminho rodeado de paredes altas, em ambos os lados. Ao cimo, no lameiro da Quintã, tirou de entre duas fragas, um saco com um lençol branco e um funil de lata. Pôs o saco ao ombro, bebeu um forte gole de aguardente de figo, duma garrafinha que trazia sempre consigo, apertou a gola do capote e enterrou mais o chapéu de feltro. Pôs-se a caminho da quinta do Doutor Castro Lima. Levava na alma a sombra de uma vida de fadigas. Ia em andar apressado para aquecer do frio e da geada – que já se acumulava nas ervas da beira do caminho- e por que ainda eram cerca de duas horas para cada lado. A Lua, em início de quarto crescente, era parca na luz que projectava e ampliava a sombra do lado esquerdo.

       Ao passar pelos Vales de Lá uma lebre levantou-se e Morgado ainda lhe atirou com a foice, sem sucesso. “Debia ter trazido a “canhota” – disse como se conversasse com a própria sombra.

       A noite era gigante e medonha e Morgado calava o medo. Quando passou pela Costa da Ferreira dois mochos mudaram de poiso e aterrorizaram ainda mais a noite com o seu piar doentio e lânguido, adensando ainda mais a profundidade da escuridão. Dum lado e doutro os olivais negros, que mais pareciam assombrações com o seu perfil escuro e hirto, dormiam o sono gelado, engranhadas e escuras, tal como a solidão dos seus donos. Permaneciam estáticas e serenas, querendo poupar energia. Ali estavam eternamente sossegadas, humildes, conformadas, domesticadas, ponderadas, casmurras, saturadas e exaustas, mas resistindo interiormente – que é assim que se conseguem as grandes vitórias, em surdina, sem espalhafatos - às agruras e intempéries dos rigorosos invernos e à torreira do sol do verão. Lá deviam estar as “negrutchas”, as verdeais, as “cordobezas” “e as “borreiras” juntamente com as “bicais”, que misturadas e bem espremidas pelas prensas, dão o melhor azeite do mundo. Esse óleo que desde tempos imemoriais já era usado não só na culinária, mas também na medicina e em produtos de beleza. Era igualmente usado como combustível, lubrificante de alfaias agrícolas, ferramentas e como impermeabilizante. Era essencial nos rituais religiosos e os Romanos consideravam-no o “elixir da juventude”. Depois dos capachos bem espremidos nas prensas e depois de secos e batidos com paus, soltavam o “bagaço”, que servia para misturar na vianda dos porcos, acender e espevitar o lume na lareira e nas fornalhas do lagar. O lagar, que era local de convívio e de aconchego nas noites frias de Inverno. Com uma fatia de pão, espetada na ponta afiada de uma varita, faziam - se torradas na fornalha, que se embebiam em azeite acabado de fazer.

Permitam-me lembrar ainda que das borras do azeite as mulheres faziam o sabão. E as alcaparras? – Tão saborosas com sal grosso! E já agora, as azeitonas “squart´lhadas “, que eram muitas vezes o “peguilho”. Pensa-se até que a oliveira é anterior à presença do homem na terra. Em homenagem à oliveira havia até uma ladainha:” A oliveira dá-nos azeitonas; as azeitonas dão-nos o azeite; o azeite dá-nos luz na candeia, saúde no mal e gosto no prato.”

       Diz a lenda que na antiga Grécia, as mulheres que queriam engravidar, ficavam longas horas sentadas à sombra de uma oliveira e era considerada o símbolo da sabedoria, da paz, da abundância e da glória. Aliás, pensa-se até que Romo e Rómulo nasceram debaixo de uma. Já Sófocles se referiu a ela com sendo “ a árvore invencível que renasce de si mesma “. E a pomba de Noé, trouxe no bico um raminho de oliveira. Antes do querosene era o azeite que nos alumiava e ainda hoje, no tempo em que decorre a história, é a candeia de azeite que ilumina todos os lares, pelo menos em Trás-os-Montes.

       Quando Morgado chegou perto da casa da Quinta, subiu para uma oliveira do mesmo lado da janela. Cobriu-se com o lençol branco e pegou no funil:

       - Ó Zé da Cruz! ´Stás a dromir?

       O eco da voz enchia a noite e espalhava-se pela serrania. Acendeu o foco e passou três vezes com a luz pela casa e apagou-o. Zé da Cruz ficou petrificado de medo e, talvez pelo susto, teve um ataque de tosse.

       - Pois ´stás bem bô, Zé da Cruz! Já no passas o Inberno.

       A voz, amplificada pelo funil, ecoava assustadoramente e ribombava profundamente de ladeira em ladeira como um trovão forte. Aqueles cabeços milenares, testemunhas do choque tectónico de há mais de trezentos milhões de anos, devolviam, dilatados, os ecos cavernosos. Zé da Cruz agachado, tossia convulsivamente.

       - Tens umas belas botas, mas já no as rompes, Zé da Cruz.- Voltou novamente à carga.

       Passou mais umas vezes a luz do foco em círculos pela casa.

       - Sabes quem eu sou, ó Zé da Cruz? Sou uma alma penada e bim-te bescar p´ra te lubar pró outro mundo.

       O eco difundia-se no vazio e era ainda mais tenebroso do que a profundidade da escuridão daqueles ermos, onde parecia não haver vivalma. Zé da Cruz estremecia a cada projecção do foco e a cada ecoar sinistro da voz aumentada pelo funil.

       Morgado tirou o lençol e desceu. Com muito cuidado pôs-se a caminho de casa. Vinha satisfeito e plenamente convencido do êxito, mas não imaginava em que estado ficou o pobre do Zé da Cruz. Há momentos únicos na vida de um homem tão extraordinários, que só por eles, já valeu a pena ter nascido. E aquele era, sem dúvida, o momento na vida de Morgado.

       Batiam as onze horas no relógio da torre, quando entrou na povoação.

       - Por dond´andastes co este tempo, home de Deus?
       - A gobernar a bida, respondeu-lhe enquanto guardava o foco na pilheira.
       - Mas que grandes bidas se gobernam cum tempo destes e a uma hora destas …!
       - Amanhê ou D´mingo, já o bamos a saber. Eu cá trago a meada na dobadeira.

       No Sábado, depois de jantar uma boa pratada de batatas com bacalhau e grelos e um ovo cozido e de beber três quartos de tinto do Altinho do Prado, Morgado desceu à loja a tratar dos animais. Trouxe a caldeira da vianda dos recos e despejou-a na pia quadrangular de pedra. Passou mais algum tempo a preparar as varas da azeitona e a separar os toldes e os sacos bons dos rotos para a mulher os remendar. Foi até à taberna do “Tchic´Augueira “. 

       Por volta das três da tarde, entrou o Zé na taberna. Deu as boas tardes de fugida e dirigiu-se ao balcão.

       - Bota cá mei cartilho, ó Francisco.
       - Atão cá por cima? – Perguntou-lhe admirado o taberneiro.
       - É c´mo bês – respondeu secamente.

       Morgado estava atento e veio sentar-se cá fora, nas pedras, junto à parede, à espera do desejado momento.

       O Zé emborcou o vinho, pôs o dinheiro no balcão e saiu.

       - Ó Morgado! Inda precisas dum pastor? – Perguntou sem mais rodeios.
       - Bô?!!Já ´stás libre?!! - Perguntou fingindo-se admirado.
       - Mas bou ficar inda houje. Se quiseres, na sigunda já tas boto. – Disse batendo com o cajado no chão,continuando a tossir.
       - S´assim quiseres, p´ra mim ´stá bem, mas no quero que ´stragues a tua bida por bia de mim.
       - Conta comigo. Inda houje ou amanhê bou a falar co Amadeu p´rarranjar oitro guardador p´rá quinta, qu´eu no tanho bida p´ráquilo .
       - Mas aconteceu-t´alguma cousa?
       - No sou guardador. Sou pastor.
       - ´Stá bem. Intende-te lá atão co Amadeu e amanhé combersemos milhor – disse Morgado em tom condescendente com o ar mais cínico que pode haver.
       - Atão inté amanhé – despediu-se o Zé.
       Morgado entrou em casa a cantarolar.
       - Este já cá canta. Este já no fuge.
       - Bens munto sastifeito, home! Isso já é pinga a mais?
       - Qal pinga, nem meia pinga! Eu no to dixo? Já temos pastor – disse triunfalmente, batendo as mãos.
       - Bô!!  E quem é ele? – Perguntou-lhe a Glorinha incrédula.
       - É o Zé da Cruz, c´mo já te tinha dito – disse com um sorriso largo.
       - Bô?! Mas atão esse no ´stá lá p´ra baixo?!
       - `Staba, mas já no ´stá.
       - O qu`é que tu fizestes ó rapaz? Boa cousa no seria – disse sorrindo carinhosamente.
       - Nada. No le fiz nadinha!!

       E a vingança consumou-se passados onze anos

Fontes de Carvalho, Verão de 2017

Podes ler AQUI a Parte I do conto
Podes ler AQUI a Parte II do conto

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
     Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
    Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
      No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
     Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
    Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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