terça-feira, 26 de julho de 2022

MORGADO - Parte II

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

...
continuação

       Morgado acabara de comprar oitenta ovelhas (incluindo quatro carneiros e seis borregos) na feira dos vinte e três, mas tinha um problema : não tinha quem lhas guardasse.
       Glorinha, sua mulher, bem insistia:
       - Ó home ! no compres agor`ó gado. Quem é que tas bota?
       - No t´apoquentes, qu´eu tanho cá um plano engendrado.
       - Hum… mais uma das tuas patranhas. Olha que já t´abiso: num tas boto – avisou-o com veemência.
       - No bai ser preciso.
       O Morgado era conhecido e admirado pela sua imaginação e brincadeiras mirabolantes. Adorava pregar partidas a toda a gente: inclusive e, principalmente, à mulher.
       Quando ia para o escondidinho, nem por milagre, encontrou o Zé da Cruz em frente ao soto do Veiga.
       - Atão por cá, ó Morgado?!
       - Inda bem que te bejo. Comprei agora oitenta cabeças ó Nabiço do Soito da Belha e q´ria que tu mas guardasses - atirou-lhe de sopetão, sem mas nem meio mas.
       -Aixe…Ó caratchos… - parou para tossir e deitar o pigarro fora. – Beins em má altura, Morgado – tossiu novamente, escarrando para o chão.
       Quando se recompôs, continuou:
       - Agora no posso – lamentou-se tossindo, numa voz aflita, rouca e cavada.
       - Mas porquê? Andas adoentado? – Perguntou fazendo-se desapercebido, pois sabia bem o motivo.
       -Não, c´oa graça de Deus. Ando só ingripado e co esta maldita tosse, qua no há bias de me largar.
       Assoou o nariz com a mão e sacudiu os dedos, limpando-os depois às calças.
       -Como se diz por cá: ” O pobre deita fora aquilo qu´o rico arrecada” – pensou Morgado.
       -Bem bejo, bem bejo – concordou, enquanto Zé da Cruz se debatia com esforço para controlar a tosse, que continuava a deitar pigarros para o chão, batendo com o cajado ao mesmo tempo que tossia convulsivamente.
       - Tu ´stás munto mal, home!! Tens que ir ó Doutor.
       - Ora bô,bô! Inda no há munto que ´stibe co Dr. Ramiro Manel, o filho do Sr. Dr. Ramiro. E sabes o qué co catano me dixo?!! Que tinha de deixar de buber binho e de fumar e que tanho é que buber munta auga morna, p´rá porcaria s´arrancar dos pulmões. Tu já bistes uma cousa assim?!! Buber munta auga…! Que a beba ele e o raio que o palira. Ora bô, bô! Buber munta auga…
       - Mas ele tem rezão, Zé. Mormente o cigarro debias deixar, imentes ´stás assim.
       - Olhó catano e a porra…se deixar de fumar, com´é que deito os ´scarros cá p´ra fora? No bês qué o tabaco que me faz tossir e ´scarrar?
       - Atão faz o seguinte – contemporizou o Morgado em tom paternalista – Cortas as pontas do pinheiro, ferbezias bem ferbidinhas e bebes a auga durante cinco dias. Bais ber que ficas logo bô.
       - Pois sim… - concordou com pouca convicção.
       - Ou atão, inda podes fazer outra cousa: ferbes um caneco de binho bem ferbidinho e ó despois botas l´açucar e bébezio bem quentinho...
       - Mas agora já ´stou rogado pró pido, a guardar azeitona do Sr. Dr.- interrompeu-o mudando de conversa, enquanto tirava um cigarro de cabeça atada, mais conhecidos pelos “mata-ratos”.
       - No debias fumar, home de Deus.
       - Ai c´um caratchos! E ele a dar-le e a burr`á fugir!!- resmungou zangado, debatendo-se contra a tosse que não parava.
       - Atão toma lá um dos meus, que sempre serão um poucotchinho milhores – ofereceu-lhe um “Definitivos”.- Atão já andastes a gastar dinheiro? – Perguntou-lhe apontando para um saco que trazia na mão.
       - Merquei umas botas – disse mostrando-lhas ao mesmo tempo que puxava o sarrão que lhe descaía do ombro do capote.
       - Catano!!! Essas são boas! São de cabedal e ´stão bem cardadas!
       - Pois é Morgado! Se me tibesses falado há tempo atrasado, podias contar comigo, mas agora já me roguei p´rá Quinta…
       - Ora, ora! Largas! Olha qu´eu pago-te bem e bens sempre a drormir a casa – carregava Morgado.
       - Ó cum caratchos! Atão tu no bês c´agora só óspois d´apanha?! – Respondeu-lhe irritado.
       Morgado percebeu bem o motivo da irritação: a dificuldade em aceitar o convite, que tanto lhe agradou.
       - Ó home! Andas por lá sozinho, desterrado, qu´inda te dão algum tiro, por i. Um home sozinho de noute, naquelas ladeiras, ´scuras c´mó inferno. Inda por cima doente…Andas por lá um infeliz.
       - Eu, infeliz?! Cum`é qu´eu posso ser infeliz se no tanho nada? Já perdi tudo o que tinh´á perder.  Só os ricos é que são infelizes, que sempre inda tanem alguma cousa que perder- disse Zé da Cruz com ar iluminado.
       Embora a alcunha fosse “Bentas Largas”, todos o tratavam por Zé da Cruz, por viver no Bairro da Cruz, junto à Capela de Santa Bárbara com a Mãe, já avançada na idade, mas ainda rija e lúcida. Era um homem baixo, atarracado, de bochechas gordas e lábios grossos, com as gengivas encarrapitadas nos dentes amarelados, mal tratados. A pele da cara era fina, avermelhada, de suíças grandes, até meio do rosto. As mãos eram pequenas e papudas, também de pele fina. Enviuvara cedo, sem chegar a ter filhos. A mulher morreu a um vinte e oito de Dezembro, quando apanhava azeitona precisamente na Quinta do Dr. Ramiro Salgado, junto ao rio. Tinha caído uma grande geada nessa noite. Escorregou e caiu à água; foi levada pela forte corrente e nunca ninguém encontrou o corpo. No local, o Zé enterrou uma cruz de ferro feita por ele e todos os anos, nesse dia, lhe punha junto à cruz, um queijo de cabra e metade de um pão centeio, o alimento preferido (ou possível) da mulher.
       - Inda ´stás sujeito por i a ser atacado p´ros  bitchos – insistia Morgado.
       - E cuidas tu que no me custa? Mas qué que le queres?! Dei a minha palabra ó Sô Dotor e olha que já lá ando p´ra riba de cinco semanas, caté já me parecem cinco anos!
       - Há tanto tempo?! – Perguntou admirado.- Pois ´stá feito!
       - Sim senhor. Ou fiz ou fai cinco semanas.
          - Isso no é bida p´ra ti. Sempre fostes pastor toda a bida!
       Pois… concordou melancolicamente, com a tristeza a espreitar-lhe pelos olhos pequeninos e fundos. – O meu gosto sempre foi o gado e quando o ti Claudino bandeu o rabanho…olha, tibe que m´agarrar ó que m´aparceu. Olha... a calquera cousa – rematou batendo duas vezes com o cajado no chão, continuando a lutar contra a tosse.
       - Atão agora oube lá, ó Zé! – Começou o Morgado mudando o rumo à conversa, encaminhando-a para o ponto que queria. ”Começar no ponto e acabar na bírgula”, como dizia o Manel Luís Madaleno. – Fala-se qu´a quinta anda assombrada. Tu já oubistes por lá alguma cousa?
       - Oubir, oubir, indo no oubi nada, mas tem noutes qu´inté parece qu´anda por lá o tchifrudo. Mas já se falaba nisso inda eu era garoto…
       - Tem cautela, Zé. Inda t´aparece por lá o tinhoso em ciroilas, qu´inda te leba co ele lá p´rás profundezas.
       Zé da Cruz estremeceu e o medo encheu-lhe os olhos. Morgado notou isso com alguma satisfação. O isco estava subtilmente lançado e Morgado já tinha um plano bem delineado na cabeça, não fosse ele o rei das “indrominices”.
       - Bá, bamos buber um caneco ali ó ti Lúcio.
       - Bamos lá, a ber se me passa esta maldita tosseira, mas por i s´tá abarrotado de pessoal, a esta hora.
       - Se ´stiber, bamos ó Carró, que tamãe o lá tem do bô.
       Quando Morgado chegou a casa, deu a novidade à mulher:
       - Já comprei as obelhas.
       - O quê?!! Aixe!!!..– disse a mulher levando mãos à cabeça. - Fizestezia linda! Sim Senhora! Atão e agora quem tas bota? – Perguntou Glorinha aflita.
       - No t´apoquentes, que já tanho quem.
       - Bem mou finto! Se pensas que sou eu, ´stás munto inganado. Nem que tchobam picaretas. – disse num tom arrreliado.
       - No t´inzaltes, que no bal´a pena. É o Zé da Cruz.
       - Esse?!! Ora bô, bô! O Zé da Cruz?! – Perguntou descrédita. – Atão tu no sabes qu´esse anda lá p´ra baixo p´rás ladeiras a guardar a azeitona do Sr. Doutor, na quinta do pido?!
       - Mas no há-de ser por munto tempo – respondeu enigmático
       - Tu bê lá! No te metas por i nalguma encrenca. 

     Convém esclarecer e em jeito de homenagem, que este Dr. Ramiro Salgado é um dos mais ilustres transmontanos. Filho de um clérigo, era dotado de uma raríssima inteligência e de uma admirável sagacidade. Tinha duas paixões: o ensino e as mulheres. Era um irresistível sedutor. Pai de seis filhos, quatro rapazes e duas raparigas, e uns tantos fora do casamento, era um dos mais poderosos do Larinho, a par com os Machado Leonardo e os Menezes. Embora nascido na Açoreira, era conhecido por todos como se fosse do Larinho. Dedicou toda a sua vida à implementação e desenvolvimento do ensino particular no Nordeste Transmontano. Fundou o Colégio Campos Monteiro em Torre de Moncorvo, assim como outros colégios em Miranda do douro, em Macedo de Cavaleiros e outros...Graças à sua abnegação e sacrifícios pessoais e familiares, muitos transmontanos do Nordeste tiraram os seus cursos superiores ou conseguiram habilitações literárias para arranjarem bons empregos. Dos milhares de alunos que lhe passaram pelas mãos não há nenhum que não fale com elevadíssima admiração e respeito das suas qualidades humanas e pedagógicas. Homem baixo, atarracado, de feitio meigo mas firme, investiu tudo o que tinha na implementação e desenvolvimento do ensino particular. Licenciado em Ciências Físico-Químicas pela Universidade do Porto, implementou um moderníssimo laboratório de química, à época.
      Tinha um Citroen, conhecido como arrastadeira que hoje serve de galinheiro às pitas. Conduzir bem não era o seu forte, pois suspeitava-se que não tinha carta de condução. Segundo as suas palavras, todas as manhãs metia a cabeça debaixo da torneira de água fria!

continua...

Fontes de Carvalho, Verão de 2017

Podes ler AQUI a Parte I do conto

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
     Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
    Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
      No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
     Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
    Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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