Nos arredores de Bragança, um projecto interdisciplinar extraiu DNA antigo de um esqueleto medieval, revelando uma anomalia genética invulgar.
SOFIA TERESO - No indivíduo de Castro de Avelãs, escondia-se um segredo invisível a olho nu. |
É possível que as histórias mais antigas dos bragantinos se escondam a pouco mais de dois quilómetros da actual cidade transmontana, em campos lavrados, onde a memória se foi atenuando com a passagem dos séculos. Ali viveram em tempos os zoelas, um povo de origem pré-romana que deixou marcas na região, legou inscrições e deixou-nos uma tábua jurídica, com as regras de um pacto há muito esquecido.
O próprio Plínio deu conta dos zoelas, no século I d.C., elogiando o seu linho de notável qualidade: “Há pouco tempo que chega também dessa mesma Hispânia a Itália o linho dos zoelas, especialmente adequado para redes de caça”, escreveu. Na confluência de uma das mais importantes estradas romanas do Ocidente peninsular, a Via XVII do itinerário Antonino que ligava Asturica Augusta (Astorga) a Aquae Flaviae (Chaves) e a Bracara Augusta (Braga), o lugar de Torre Velha, junto da aldeia de Castro Avelãs, foi escavado por uma equipa da Universidade de Coimbra coordenada por Pedro C. Carvalho, com apoio do Município de Bragança.
A CAPITAL DOS ZOELAS?
Os achados arquitectónicos e osteológicos sugerem que ali poderá ter sido a capital dos zoelas em época romana e uma das estalagens oficiais desse itinerário. “O lugar encerra um passado e uma carga histórica importante”, diz o arqueólogo. “É um lugar de referência para a história mais recuada de Trás-os-Montes e, de certa forma, está na origem da actual cidade de Bragança.” Na época sueva, é possível que à civitas dos zoelas tenha sucedido o pagus Brigantia mencionado no Paroquial Suevo escrito pouco antes de 585 d.C., uma vez que muitas paróquias suevas replicaram o modelo administrativo romano. Nas escavações de 2012 a 2015, identificou-se um amplo espaço funerário utilizado durante mais de meio milénio, entre os séculos VI e XIII, como as datações por radiocarbono comprovaram. Foram também encontrados os alicerces de uma igreja primitiva, dos séculos VI e VII, arrasada cem anos mais tarde. São os indícios mais fortes encontrados até hoje da manutenção da relevância de Castro de Avelãs no período medieval. Mas a maior surpresa não era essa.
ROTA DA TERRA FRIA TRANSMONTANA / RUI CUNHA |
O mosteiro de Castro de Avelãs foi o monumento religioso mais importante de Trás-os-Montes Oriental na idade média. A tradição do século XVIII fez recuar a sua origem ao século VII e a uma lendária fundação por São Frutuoso, mas não se encontraram provas dessa antiguidade. Teve um papel decisivo na organização regional do território durante a Alta Idade Média até à fundação da cidade de Bragança.
A AJUDA DA GENÉTICA
A equipa de antropólogos, constituída por Sofia Tereso, Cláudia Umbelino e André Brito, exumou e estudou 59 indivíduos na necrópole da Torre Velha. Um deles, do sexo masculino e com pelo menos 25 anos de idade, chamava a atenção – consideravelmente mais alto do que os restantes (1,80m), tinha patologias visíveis nos ossos e algumas características morfológicas frequentemente observadas em populações de origem africana. O caso teria passado como uma extravagância, não fosse uma das especificidades do projecto: a colaboração da equipa de Coimbra com o Centro Australiano de DNA Antigo da Universidade de Adelaide, onde o biólogo João C. Teixeira é também afiliado. Esta instituição especializou-se em extracção de DNA antigo a partir de amostras ósseas e a equipa cedeu amostras de seis indivíduos da necrópole medieval de Castro de Avelãs para análise.
PEDRO C. CARVALHO - TRABALHO MINUCIOSO Entre 2012 e 2015, a equipa da Universidade de Coimbra e a arqueóloga municipal Clara André escavaram a necrópole. |
“O DNA antigo tem ajudado a desvendar episódios desconhecidos da nossa história evolutiva, como cruzamentos entre neandertais e humanos modernos quando os nossos antepassados saíram de África”, diz o biólogo. Poderia trazer pistas de interpretação para este caso? Xavier Roca-Rada, aluno de doutoramento sob a orientação de João C. Teixeira na Universidade de Adelaide, trabalhou o material em laboratório, utilizando a pars petrosa, o osso craniano que melhor preserva DNA em esqueletos antigos.
O DNA antigo é um gigantesco puzzle, ao qual faltam sempre peças por força da fragmentação provocada pelo tempo, pelo tipo de solo e pelas condições de enterramento. Roca-Rada isolou fragmentos das amostras para sequenciar os pares de bases de cada indivíduo e mapeou-os no respectivo genoma.
O genoma de qualquer humano é constituído por 23 pares de cromossomas – 22 pares de autossomas numerados de acordo com tamanho e um par de cromossomas sexuais. Seria de esperar que, nas amostras do indivíduo da Torre Velha, o número de cromossomas recuperados replicasse estatisticamente a dimensão dos maiores cromossomas humanos, mas tal não sucedeu. Os fragmentos de DNA mapeados no cromossoma X eram os esperados, mas havia também um número considerável de fragmentos no cromossoma Y. Por outras palavras, o indivíduo masculino deveria ter um cromossoma X e outro Y – mas tinha dois X.
MUSEU DO ABADE DE BAÇAL / JOSÉ PESSOA / DGPC - Uma estela funerária romana, do mesmo período. |
Artigo publicado originalmente na edição nº 11 da revista História National Geographic (Junho-Julho 2023).
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