domingo, 19 de outubro de 2025

A Matança de Outeiro - Capítulo VII – Memórias de Sangue e Pedra


 Outeiro despertava para a rotina da reconstrução. A névoa ainda se agarrava às encostas da aldeia, mas agora parecia menos ameaçadora, como se os campos e as pedras começassem a assimilar a memória da batalha. As ruas carregavam as marcas do conflito. Muros danificados, portões remendados, rastos de sangue e pegadas de homens e cavalos. A Matança não era um nome, era uma história viva.

Tomé caminhava pelas ruas, agora com passos mais firmes. Ele supervisionava a reconstrução das casas, ajudando os mais jovens a carregar pedras, arranjar telhas e reparar portas. Lembrava-se da batalha e das vidas que tinham sido perdidas. A dor ainda existia, mas havia também uma sensação de vigor e coragem, a aldeia precisava de sobreviver, crescer e preservar a sua memória.

Maria percorria os lares e curava dos feridos, mas também recolhia relatos da batalha. Falava com cada aldeão sobre o que tinham visto e feito, registando detalhes que poderiam perder-se com o tempo. As crianças aprendiam com ela, absorvendo a coragem e a responsabilidade de proteger a aldeia e honrar aqueles que tinham caído.

- Todos os gestos, as palavras, as lembranças são importantes. Dizia Maria. - A memória é o que nos mantém vivos, mesmo quando perdemos quem amamos.

João liderava grupos de jovens na vigia e em treinos. Recrutava os mais fortes para patrulhar os arredores, ensinar técnicas de caça e defesa, e explicar como o conhecimento do terreno poderia marcar a diferença entre a vida e a morte. Cada passo que dava, servia para transmitir a experiência que a batalha lhes tinha ensinado, transformando o medo em disciplina e coragem.

O velho Tiago organizava encontros à noite, à luz das fogueiras. Reunia os aldeões e contava a história da Matança. Falava com detalhe de cada combate, de cada ato de heroísmo, de cada sacrifício. Os olhos de todos enchiam-se de lágrimas e orgulho enquanto reviviam os acontecimentos, entendendo que a sua sobrevivência e a sua aldeia dependiam da união e da memória.

- Não podemos deixar que o tempo apague o que fizemos, dizia ele. - Devemos lembrar, ensinar e proteger.

O canhão que permanecia sobre o cavalete tornou-se o símbolo mais visível da resistência de Outeiro. Homens e mulheres passavam por ele diariamente, tocando o ferro frio e imaginando os combates que ali aconteceram. Outros dois canhões foram levados, um para o Museu Militar de Bragança e outro pelos franceses, mas a aldeia sabia que a verdadeira força estava naqueles que permaneciam.

As noites eram longas e cheias de lembranças. Histórias de coragem eram contadas ao redor da lareira, e os relatos reforçavam a identidade da aldeia. As crianças ouviam fascinadas, homens e mulheres lembravam-se do sacrifício dos que caíram, e todos compreendiam que a verdadeira vitória não era apenas sobreviver à batalha, mas manter viva a memória dela.

Tomé, Maria e João tornaram-se guardiões da história. Tomé ensinava os jovens na oficina, Maria cuidava da saúde da aldeia e transmitia conhecimento sobre ervas e remédios, e João treinava novos defensores, garantindo que Outeiro nunca mais seria surpreendida.

A aldeia, ainda marcada pelo sangue e pela destruição, renascia mais forte. Cada casa reconstruída, cada árvore plantada representava a continuidade da vida, mas também o compromisso de nunca esquecer a Matança.

Outeiro aprendeu que a história não estava apenas nas pedras ou nos canhões, mas nas pessoas, nas memórias partilhadas e na coragem que florescia mesmo diante da morte. A aldeia tornou-se num lugar onde o passado e o presente se cruzavam, garantindo que a Matança permanecesse viva, como memória e legado de um povo que não cedeu.

Continua...

N.B.: Este conto tem como base a "Lenda" de Outeiro "A Matança". A narrativa e os personagens fazem parte do mundo da ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas reais, não passa de mera coincidência.

HM

Sem comentários:

Enviar um comentário